Programa Mundial de Alimentos vence Nobel da Paz por combate a fome e ação em conflitos

Multilateralismo está sob ataque de populistas, afirma comitê, mas pandemia mostra que solidariedade global nunca foi tão necessária

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São Paulo e Bruxelas

Pelos esforços em combater a fome e evitar que ela seja usada como arma em conflitos em todo o mundo, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) ganhou o prêmio Nobel da Paz de 2020.

Em anúncio nesta sexta (9), a presidente do comitê norueguês do Nobel, Berit Reiss-Andersen, justificou a láurea ao dizer que “a necessidade por solidariedade internacional é mais importante que nunca”.

Ela afirmou que o multilateralismo está sob ataque de populistas, com argumentos nacionalistas de que cada país deve cuidar de seus próprios interesses, mas a pandemia de coronavírus mostrou que, em um momento de crise global, é necessária também ação universal.

"Até que tenhamos uma vacina [contra o coronavírus], comida é a melhor vacina contra o caos", disse a presidente do comitê, citando declaração do próprio programa da ONU. Segundo Reiss-Andersen, parte da fragilidade de programas multilaterais vem da falta de recursos. O Nobel para o PMA é também um apelo à comunidade internacional para financiá-lo de forma adequada e evitar que milhões morram de fome.

Maior agência humanitária de combate à fome do mundo, o programa da ONU atendeu em 2019 vítimas de insegurança alimentar aguda em 88 países, segundo Reiss-Andersen. O ano passado registrou um dos maiores números de vítimas de fome aguda no mundo, cerca de 135 milhões de pessoas, em grande parte devido a guerras e conflitos armados, afirmou a presidente do comitê.

A crise foi agravada com a crise sanitária, afirmou em entrevista à Folha, em maio, o diretor para América Latina e Caribe da instituição, Miguel Barreto. Segundo ele, o fechamento de fronteiras e a proibição de aglomerações foram alguns dos principais fatores que dificultaram os trabalhos humanitários.

Em rede social, o fundo, 101º vencedor do Nobel da Paz, disse que recebia o prêmio "com humildade".

"É o reconhecimento ao trabalho da equipe do PMA, que coloca suas vidas em risco todos os dias para levar alimentos e assistência a mais de 100 milhões de crianças, mulheres e homens famintos em todo o mundo", diz o texto publicado. O chefe da entidade, David Beasley, afirmou à agência de notícias Associated Press que foi "a primeira vez na minha vida que fiquei sem palavras".

O diretor-executivo do Programa Mundial de Alimentos, David Beasley - Dens Balibouse - 4.dez.2020/Reuters

A premiação de uma agência da ONU acontece também no mesmo ano em que os Estados Unidos suspenderam o financiamento à Organização Mundial da Saúde, por criticar falhas da agência na resposta à pandemia de coronavírus.

Desde 2017, quando o presidente Donald Trump tomou posse, os Estados Unidos se retiraram de vários órgãos da ONU e cortaram as contribuições a outros.

Questionada sobre se alguém poderia acusar a escolha de uma agência das Nações Unidas como uma provocação, a presidente do comitê de premiação respondeu: "Não vejo como chamar a atenção para que as pessoas passam fome possa ser visto por qualquer um como uma provocação".

Ela também afirmou esperar que a premiação aumente a visibilidade da fome, "principalmente nos países desenvolvidos, onde não a vemos nem a experimentamos".

"Espero que todas as nações que têm capacidade possam contribuir para resolver esse problema. Não é só uma questão de fornecer comida, mas de criar comunidades sustentáveis em que a produção de alimentos seja capaz de trazer estabilidade e evitar conflitos", afirmou Reiss Andersen.

Como outras agências das Nações Unidas, o programa recebe também críticas por administração ineficiente, perda de recursos e até desvios provocados por funcionários. O comitê, porém, diz que não vê motivos para críticas semelhantes no caso do Fundo Mundial de Alimentos.

"O programa tem sido capaz de atuar em áreas de extrema dificuldade, como a Síria, a Coreia do Norte e o Iêmen, com um trabalho de alto nível, e este é também um dos motivos pelos quais ele recebe a premiação."

Neste ano, 318 indicados foram considerados para o Nobel da Paz: 211 indivíduos e 107 organizações. O valor do prêmio é de 10 milhões de coroas suecas, equivalente a R$ 6,33 milhões, na cotação desta sexta.


Quando o Programa Mundial de Alimentos começou?
O PMA foi criado em 1961 a pedido do então presidente dos Estados Unidos, o republicano Dwight Eisenhower. A princípio, tratava-se de um experimento para testar a capacidade da ONU de entregar ajuda humanitária alimentar.

A primeira operação aconteceu em 1962, no Irã, quando um terremoto que atingiu a região noroeste do país deixou mais de 12 mil mortos.

Em 1965, o PMA ganhou status permanente. Sua sede fica em Roma, na Itália.

O que o PMA faz?
Ele é o braço da ONU dedicado à entrega de assistência alimentar em emergências humanitárias. Ele também desenvolve trabalhos com comunidades de todo o mundo para melhorar os índices de nutrição e garantir segurança alimentar.

Segundo a ONU, o programa tem 5.600 caminhões, 30 navios e quase 100 aviões entregando alimentos todos os dias.

Em 2019, o PMA ajudou 97 milhões de pessoas.

Durante a pandemia do novo coronavírus, o programa enviou ajuda médica a mais de 120 países, além de transportar trabalhadores humanitários e da saúde em regiões onde os voos comerciais foram suspensos.

Onde ele atua?
Atualmente, o PMA atua em emergências alimentares em duas regiões e quatro países: Sahel (África) e nordeste da Nigéria; República Democrática do Congo, Sudão do Sul, Síria e Iêmen.

De onde vêm os recursos?
O PMA tem o segundo maior orçamento entre as agências da ONU, ficando atrás apenas do Departamento de Operações de Paz. Em 2018, recebeu US$ 6,8 bilhões (R$ 37,5 bilhões no câmbio atual), o equivalente a 13% do orçamento total das Nações Unidas.

O PMA é financiado também por doações voluntárias, principalmente de governos, mas também de empresas e doadores privados. Em 2019, arrecadou US$ 8 bilhões (R$ 44,2 bilhões).


Saiba mais sobre o Nobel

O prêmio Nobel foi criado a partir do testamento de Alfred Nobel (1833-1896), um engenheiro e químico sueco, conhecido por ter inventado a dinamite e desenvolvido a borracha e o couro sintéticos.

Um ano antes de morrer, Nobel destinou 94% de sua fortuna de 31 milhões de coroas suecas (equivalente a R$ 1,1 bilhão nos dias de hoje) à criação de um prêmio que reconhecesse anualmente “o maior benefício à humanidade” nas áreas da química, física, medicina, literatura e paz.

A primeira edição do Nobel foi realizada em 1901. Desde então, o Nobel da Paz —dedicado “à pessoa que mais ou melhor trabalhou pela fraternidade entre as nações, pela abolição ou redução dos exércitos e pela promoção de congressos de paz”, segundo o estatuto da Fundação Nobel— foi entregue cem vezes.

O comitê responsável por escolher o laureado com o Nobel da Paz é escolhido pelo Parlamento norueguês. Nos valores de hoje, o ganhador recebe um prêmio em dinheiro de 10 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 6,4 milhões), uma medalha e um diploma.

O prêmio da Paz já foi criticado por ser, supostamente, politizado em excesso ou voltado ao incentivo de realizações futuras. Em 2015, o ex-diretor da Fundação Nobel, Geir Lundestad, escreveu num livro que questionava, em retrospecto, a decisão de entregar o Nobel ao ex-presidente dos EUA Barack Obama, em 2009, uma vez que o prêmio “não produziu o [efeito] que o comitê esperava”.

Foram especialmente controversos os prêmios concedidos ao ex-líder soviético Mikhail Gorbatchov (1990), ao ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger (1973) e ao ex-presidente dos EUA Jimmy Carter (2002). A omissão de Gandhi, que entrou na lista de indicados cinco vezes, mas nunca recebeu o Nobel, é um arrependimento célebre da Fundação Nobel.

Ao contrário do que sugere o estatuto, o Nobel da Paz pode ser entregue a mais de uma pessoa ou a uma instituição. Vinte e sete organizações já receberam o prêmio, incluindo a União Europeia, o Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC) e a própria Organização das Nações Unidas.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) ganhou o prêmio duas vezes, em 1954 e 1981, e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, três —em 1917, 1944 e 1963.

O prêmio da Paz não foi entregue a ninguém em 19 edições, devido a Guerras Mundiais ou porque a fundação avaliou que não havia trabalhos de suficiente importância naquele ano e optou por reservar o valor para a edição seguinte.

A reunião em que os vencedores do Nobel são definidos ocorreu com mudanças em 2020; para evitar contaminações, foi dividida em encontros menores, a partir dos quais foram feitas as escolhas. Os premiados deste ano não irão a Estocolmo para receber o prêmio.

Na edição de 2020, a láurea de Medicina foi para a descoberta do vírus da hepatite C. Foram premiados Harvey Alter, dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH), Michael Houghton, da Universidade de Alberta, e Charles Rice, da Universidade Rockefeller.

Já a láurea de Física ficou com os pesquisadores Roger Penrose, Reinhard Genzel e Andrea Ghez, que melhoraram o entendimento humano sobre buracos negros.

O prêmio da Química foi para Emmanuelle Charpentier, do Instituto Max Planck, da Alemanha, e Jennifer Doudna, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, pelo desenvolvimento do método Crispr/Cas9 (pronuncia-se "crísper") de edição do genoma utilizada na busca da cura para doenças genéticas e câncer.

A láurea de Literatura foi para a poeta americana Louise Glück, por sua "voz poética inconfundível que, com beleza austera, torna universal a existência individual".​

Veja lista com os últimos dez vencedores do Nobel da Paz

2019: O primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, que assinou acordo de paz que pôs fim a duas décadas de hostilidades com a Eritreia

2018: O congolês Denis Mukwege e a iraquiana Nadia Murad, que denunciaram a violência em relação a vítimas de violência sexual como arma de guerra

2017: Campanha Internacional para Abolir Armas Nucleares (Ican), por chamar a atenção para o risco de armas nucleares

2016: Juan Manuel Santos, ex-presidente da Colômbia que negociou o acordo de paz com as Farc

2015: Quarteto para o Diálogo Nacional da Tunísia, pela contribuição decisiva na construção de uma sociedade plural no país

2014: A paquistanesa Malala Yousafzai e o indiano Kailash Satyarthi, premiados pela defesa dos direitos das crianças e à educação

2013: Organização para a Proibição de Armas Químicas, sediada na Holanda, foi premiada por sua defesa da proibição de armas químicas

2012: A União Europeia, por mais de seis décadas promovendo os direitos humanos e a paz na Europa

2011: Ellen Johnson Sirleaf, Leymah Gbowee e Tawakkol Karman, premiadas pela luta não violenta pela seguranças das mulheres e por seu direito de participação plena em processos de paz

2010: Liu Xiaobo, ativista chinês premiado por sua luta longa e não violenta pelos direitos humanos em seu país

2009: Barack Obama, ex-presidente dos EUA, reconhecido por reforçar a diplomacia internacional e a cooperação entre as pessoas ​

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