Prisão de 'terrorista' no Canadá coloca em xeque repórter-estrela do New York Times

Rukmini Callimachi lançou podcast cujo personagem central pode ser falso

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Ben Smith
The New York Times

Derek Henry Flood não estava procurando trabalho em março de 2018, quando enviou uma mensagem a uma repórter de The New York Times que admirava, Rukmini Callimachi, dando-lhe parabéns pelo anúncio de seu novo podcast sobre o grupo terrorista conhecido como Estado Islâmico.

Naquela época, os principais meios de comunicação americanos, assustados por uma onda de sequestros e assassinatos, tinham parado de contratar freelancers como Flood na Síria.

Mas quando Flood mencionou que estava na cidade de Manbij, no norte do país, Callimachi respondeu e rapidamente o contratou para uma curiosa tarefa. Ela o enviou ao mercado local para investigar um combatente do Estado Islâmico canadense chamado Abu Huzayfah.

Mulheres em campo na Síria onde parentes de membros do Estado Islâmico estão detidos
Mulheres em campo na Síria onde parentes de membros do Estado Islâmico estão detidos - Delil Souleiman - 18.ago.20/AFP

A missão, Flood disse que pensou à época, era ao mesmo tempo inútil e bastante estranha em sua especificidade, já que o grupo extremista tinha sido forçado a sair de Manbij dois anos antes.

Mas ele estava ganhando US$ 250 por dia, então percorreu o bazar atentamente, relatando tudo o que viu e ouviu. Callimachi tinha um foco singular. "Ela só queria coisas que apoiassem decisivamente as histórias malucas desse rapaz do Canadá", disse ele.

Flood não sabia na época, mas fazia parte de um esforço frenético do New York Times para salvar o projeto que o jornal acabara de anunciar. Dias antes, os produtores tinham enviado os rascunhos dos roteiros da série, chamada "Caliphate" (califado), ao editor de internacional, Michael Slackman.

Mas Slackman chamou a equipe do podcast para o escritório de outro editor importante do Times, Matt Purdy, um vice-editor administrativo que frequentemente assina projetos investigativos.

Os editores alertaram que toda a história parecia depender da credibilidade de um único personagem, o canadense, cujas narrativas vívidas sobre execução de homens enquanto sangue quente "espirrava por toda parte" eram tão sinistras quanto não corroboradas.

O Times estava em busca de uma coisa: evidências de que a história do canadense era verdadeira.

Em Manbij, Flood vagou pelo mercado até que um comerciante de ouro o avisou que suas perguntas estavam atraindo atenção, levando-o a embarcar rapidamente em um ônibus e sair da cidade.

Em todo o Oriente Médio, outros repórteres do Times também foram solicitados a encontrar a confirmação dos laços da fonte com o Estado Islâmico, e eles se comunicavam em canais do WhatsApp com nomes como "Brilliant Seekers" (buscadores brilhantes) e "New Emir Search" (nova busca pelo emir).

Mas, em vez de encontrar o emir, descobriram que desertores do EI nunca tinham ouvido falar dele.

Em Nova York, Malachy Browne, produtor sênior de investigações visuais do Times, conseguiu confirmar que uma imagem do telefone de Huzayfah foi tirada na Síria —mas não que ele viajou para lá.

Outros repórteres do Times em Washington tentaram encontrar a confirmação. Um deles, Eric Schmitt, puxou um fio que parecia salvar o projeto: "Dois funcionários diferentes do governo dos EUA, em agências diferentes, me disseram que esse indivíduo, esse canadense, era membro do EI", disse ele no podcast.

"Eles acreditam que ele se uniu ao EI na Síria." Mas Schmitt e seus colegas, segundo me disseram os jornalistas do Times, nunca determinaram por que aqueles funcionários do governo o consideravam parte do EI, ou se de fato eles tinham alguma prova de suas conexões com o EI além de declarações do autodeclarado terrorista nas redes sociais.

Um mês depois, a equipe de áudio do Times avançou. O primeiro episódio de "Califado" saiu em 19 de abril de 2018, marcando um grande passo em direção à realização das ambições multimídia do jornal.

Foi promovido com uma campanha de marketing brilhante que apresentava uma imagem atraente, com as ruínas de Mosul de um lado e o rosto de Callimachi do outro.

A série teve 10 partes ao todo, incluindo um novo sexto episódio lançado em 24 de maio daquele ano, detalhando dúvidas sobre a história de Huzayfah e os esforços do Times para confirmá-la.

A apresentação encerrava uma suposição óbvia, embora implícita: o personagem central da narrativa não estava inventando a história toda.

Essa suposição pareceu explodir algumas semanas atrás, em 25 de setembro, quando a polícia canadense anunciou que havia prendido o homem que se denominava Abu Huzayfah, cujo nome verdadeiro é Shehroze Chaudhry, por infração à lei de fraudes do país.

Os detalhes da investigação canadense ainda não foram divulgados. Mas as recriminações foram rápidas entre aqueles que trabalharam com Callimachi no Times no Oriente Médio.

"Talvez a solução seja alterar o nome do podcast para #farsa?", tuitou Margaret Coker, que deixou o cargo de chefe da sucursal do Times no Iraque em 2018 após uma disputa acirrada com Callimachi e agora dirige uma startup de jornalismo investigativo na Geórgia.

O Times designou um editor, Dean Murphy, que chefia o grupo de reportagem investigativa, para revisar o processo de reportagem e edição por trás de "Califado" e algumas outras reportagens de Callimachi.

Também designou um correspondente investigativo com profunda experiência em reportagem de segurança nacional, Mark Mazzetti, para determinar se Chaudhry alguma vez pôs os pés na Síria e outras questões abertas pela prisão no Canadá.

A crise agora em torno do podcast é tanto sobre o Times quanto sobre Callimachi.

Ela é, em muitos aspectos, o novo modelo de repórter do New York Times. Combina a valentia do repórter famoso à moda antiga com perícia moderna para navegar nas ondas narrativas do Twitter e identificar as histórias que vão explodir na internet.

Ela abraçou o áudio quando se tornou um novo negócio importante para o jornal e vinculou ao trabalho sua própria história de fuga da Romênia quando criança. E contou a história do Estado Islâmico por meio dos olhos de seus membros.

A abordagem de Callimachi conquistou o apoio de algumas das figuras mais poderosas do Times: logo no início, de Joe Kahn, que era editor de internacional quando Callimachi chegou e hoje é editor-gerente, o segundo na hierarquia do jornal, e visto internamente como o provável sucessor do editor executivo, Dean Baquet.

Mais tarde, de um editor administrativo assistente, Sam Dolnick, que supervisiona a bem-sucedida equipe de áudio do jornal e é membro da família que é dona do Times.

Ela era vista como uma estrela —posição que a ajudou a sobreviver a uma série de questões levantadas nos últimos seis anos por colegas no Oriente Médio, incluindo os chefes das sucursais de Beirute, Anne Barnard, e do Iraque, Coker, além da jornalista síria Karam Shoumali, que foi intérprete para ela numa reportagem especialmente polêmica sobre reféns americanos em 2014.

E também a ajudou a resistir às críticas a histórias de acadêmicos e outros jornalistas de língua árabe.

Muitas dessas discussões foram reexaminadas nos últimos dias em The Daily Beast, The Washington Post e The New Republic. C. J. Chivers, um experiente correspondente de guerra, entrou em confronto particularmente duro com Kahn por causa do trabalho de Callimachi, opondo-se à sua abordagem no caso de reféns ocidentais feitos por militantes islâmicos.

Chivers alertou os editores sobre o que ele considerava sensacionalismo e imprecisão de Callimachi e disse a Slackman, segundo três pessoas do Times, que fechar os olhos para os problemas de seu trabalho iria "incendiar este lugar".

A abordagem de Callimachi para contar histórias se alinhou a uma mudança mais profunda em curso no Times. O jornal está no meio de uma evolução do mero registro enfadonho para uma coleção suculenta de grandes narrativas, na web e em serviços de streaming.

Baquet se recusou a comentar detalhes das reportagens de Callimachi ou as reclamações internas sobre elas, mas defendeu a varredura de seu trabalho relacionado ao Estado Islâmico.

"Não acho que haja dúvidas de que o EI foi um ator importante no terrorismo", disse ele, "e se você olhar todas as reportagens do Times ao longo de muitos anos acho que é uma mistura de reportagens que ajuda a entender o que dá origem a isso."

(Baquet e Kahn, devo observar aqui, são respectivamente o chefe do chefe do meu chefe e o chefe do meu chefe, e escrever sobre o Times estando em sua folha de pagamento inclui todos os tipos de potenciais conflitos de interesses e geralmente é uma espécie de pesadelo.)

Enquanto alguns de seus colegas no Oriente Médio e em Washington consideravam excessiva a abordagem de Callimachi na cobertura do EI, outros admiravam sua implacável ética profissional.

"Ela é agressiva? Sim, assim como os melhores repórteres", disse Adam Goldman, que cobre o FBI para o Times e argumentou a favor do tipo de reportagem que afastou Callimachi de outros colegas. "Nenhum de nós é infalível."

O que está claro é que o Times deveria estar alerta para a possibilidade de que, em seu principal documentário em áudio, estivesse dando demasiada atenção à história que queria ouvir —"torcendo pela reportagem", como disse Eric Wemple, do Washington Post, na sexta-feira (2).

E enquanto Baquet enfatizou em uma entrevista na semana passada que a revisão interna examinaria se o Times não estava mantendo seus padrões no departamento de áudio, os critérios preocupantes em torno das reportagens de Callimachi já eram claros antes de "Califado".

Veja uma reportagem de 2014. O artigo, que ganhou a primeira página em 28 de dezembro, descreve um cativo sírio do EI que se chamava Louai Abo Aljoud. Ele "fez contato visual com reféns americanos detidos pelo grupo militante Estado Islâmico" em uma prisão numa fábrica de batatas fritas abandonada em Aleppo e tentou avisar ao governo americano, que não se interessou.

"Achei que tinha informações realmente importantes que poderiam ser usadas para salvar aquelas pessoas", disse Callimachi. "Mas fiquei profundamente desapontada." A história é contada com entusiasmo e confiança. Como leitor, você se sente como se estivesse lá.

Mas os elementos da história eram duvidosos: quando, segundo relatou Abo Aljoud, ele tentou alertar o governo dos Estados Unidos de que tinha visto os reféns, o Estado Islâmico não controlava mais a área onde estaria a prisão.

Abo Aljoud contou a mesma história ao Wall Street Journal, e o Journal não a divulgou porque os jornalistas de lá não acreditaram nele, disseram-me dois dos envolvidos.

E o jornalista sírio que ajudou Callimachi na reportagem e interpretou a entrevista, Shoumali, disse-me que a "advertiu" para não confiar em Abo Aljoud "antes, durante e depois" da entrevista —em vão.

(Callimachi disse que não se lembrava dos avisos antes da publicação e observou que eles não aparecem na correspondência entre ela e Shoumali antes da publicação.)

Shoumali disse que saiu da experiência assustado com os métodos dela.

"Trabalhei para muitos repórteres, e buscávamos fatos. Com Rukmini, parecia que a história estava pré-relatada em sua cabeça e ela procurava alguém para lhe contar o que ela já acreditava, o que ela achava que seria uma grande reportagem", disse Shoumali, que foi repórter do Times de 2012 a 2019 e fez uma matéria freelance em agosto último.

Oito dias após a publicação da reportagem, Shoumali escreveu para Callimachi e outros repórteres do Times, em uma troca de emails que obtive, dizendo que "os contatos sírios estão levantando cada vez mais questões sobre a credibilidade de uma de nossas fontes" e que Abo Aljoud havia alterado detalhes da história em uma conversa que os dois homens tiveram depois que o texto foi publicado.

Callimachi respondeu por email que os detalhes da cena da prisão foram "confirmados de forma independente por reféns europeus mantidos no mesmo local ou então pelo Departamento de Estado" —resposta intrigante, já que a história apresentava as observações de Abo Aljoud como testemunha ocular.

O Times estava suficientemente preocupado com a reportagem de 2014 para enviar outro repórter, Tim Arango, de volta ao sul da Turquia logo depois que foi publicada, para entrevistar novamente Abo Aljoud, que repetiu exatamente sua história para ele e Shoumali.

Eu tentei novamente no início de outubro. Como Callimachi, não falo árabe e contratei outro jornalista sírio para fazer minhas perguntas a Abo Aljoud. Nessa entrevista, ele contou uma versão da história que apareceu no Times, mas com elementos que turvavam a narrativa.

Disse que tinha visto apenas um refém, não os três sugeridos pelo Times. E que só depois que foi solto percebeu que tinha visto algum deles —ao contrário da impressão dada pelo artigo do Times.

Callimachi disse em um email que gostaria que a reportagem tivesse sido mais clara sobre as "limitações" das reportagens sobre terroristas. "Olhando para trás, gostaria de ter usado mais citações, para que os leitores soubessem as medidas que tomei para corroborar detalhes do relato dele", disse ela.

Kahn, o editor de internacional na época, continua defendendo a reportagem.

"As questões levantadas sobre uma fonte em uma reportagem que Rukmini escreveu sobre reféns americanos na Síria foram exaustivamente examinadas na época por repórteres e editores de internacional e pela Ombudsman do Times, e os resultados dessas análises foram publicados", disse ele.

"Não tenho conhecimento de novas informações que levantem dúvidas sobre a forma como foi tratado."

Deixando essas questões de lado, o artigo sem dúvida teve um impacto em Washington, pressionando o governo dos EUA a reconsiderar sua proibição de pagar resgate.

Mas a própria reportagem agora está sob uma nuvem incômoda de dúvida. Permanece no site do Times, sem menção às perguntas em torno do relato inicial. A única correção diz que o texto, quando foi publicada pela primeira vez, não deixava claro que Abo Aljoud tinha usado um pseudônimo.

No mês passado, essa mesma nuvem de dúvida desceu sobre "Califado". E Callimachi agora enfrenta críticas intensas dentro e fora do Times —por seu estilo de reportagem, pelas narrativas cinematográficas em seus textos e pelo lugar do Times em discussões maiores sobre retratos do terrorismo.

Embora parte da cobertura a tenha retratado como uma espécie de atriz desonesta no Times, porém, minha apuração sugere que ela estava entregando o que os chefes mais antigos da organização noticiosa pediam, com o apoio deles.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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