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Protestos contra violência policial deixam dezenas de mortos e fecham escolas na Nigéria

Manifestantes vão às ruas desde início do mês e foram reprimidos com armas de fogo

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São Paulo

Em junho deste ano, um extenso relatório da ONG Anistia Internacional com denúncias de torturas e abusos policiais na Nigéria chamava a atenção para o caldo que está fervendo desde o início de outubro no país —quando protestos contra a violência das forças de segurança levaram milhares de pessoas às ruas e foram reprimidos inclusive com disparos de armas de fogo.

O número de mortos varia de acordo com a fonte. A Anistia Internacional afirmou que já são pelo menos 56 mortos desde o dia 8, sendo 38 deles na terça-feira (20), as 24 horas mais violentas até aqui.

Já a agência de notícias AFP contabiliza ao menos 18 vítimas, e o governo não divulga números oficiais.

Homens armados são vistos nas ruas de Lagos, na Nigéria, em imagem obtida nas redes sociais
Homens armados são vistos nas ruas de Lagos, na Nigéria, em imagem obtida nas redes sociais - Reuters

“As vítimas incluem manifestantes e bandidos que supostamente teriam sido contratados pelas autoridades para confrontar os protestos. Em diversos casos, forças de segurança usaram força excessiva para tentar controlar ou parar os atos”, afirmou a entidade de defesa dos direitos humanos.

Apenas em dois distritos de Lagos, a maior cidade do país, com 20 milhões de habitantes, a ONG afirma ter registrado a morte de 12 manifestantes após o ato que reuniu mais de mil pessoas e que ignorou o toque de recolher imposto na terça pelo governo local em vários estados.

De acordo com a Anistia, as forças militares nigerianas começaram a atirar pouco antes das 19h (horário local), enquanto os protestos eram pacíficos. As agências de notícias AFP e Reuters compilaram relatos e imagens de soldados com armas de fogo nas mãos.

A contabilização de mortes também varia quando vocalizada por autoridades locais. O governador da região, Babjide Sanwo-Olu, para quem o país vive um de seus “momentos mais sombrios”, confirmou uma morte após um tiroteio, mas disse não poder confirmar se o fato está relacionado às manifestações.

Mulher chora em protesto na frente da embaixada nigeriana em Pretoria, na África do Sul
Mulher chora em protesto na frente da embaixada nigeriana em Pretoria, na África do Sul - Phill Magakoe - 21.out.2020/AFP

Já o presidente da Nigéria, Muhammadu Buhari, limitou-se a pedir “calma” e não citou tiroteios nem mortos, enquanto um representante do congresso nigeriano confirmou que houve “algumas casualidades por tiros de arma de fogo”. O governador do estado de Oyo, Seyi Makinde, por sua vez, disse nas redes sociais que visitou no último dia 13 os familiares de três pessoas mortas nos atos.

Os protestos são reprimidos tanto pela polícia, auxiliada por forças especiais, quanto pelo Exército. Os militares, aliás, chamam de fake news vídeos que circulam nas redes sociais mostrando soldados com armas na mão nas ruas do país.

Manifestantes em Lagos na última terça-feira (20), mesmo após a ordem de toque de recolher na cidade
Manifestantes em Lagos na última terça-feira (20), mesmo após a ordem de toque de recolher na cidade - Temilade Adelaja/Reuters

Com a escalada da tensão, prédios foram incendiados em Lagos, inclusive a sede de um canal de TV relacionado a políticos dominantes na região. As escolas da cidade estão fechadas desde segunda (19).

Nesta quarta (21), os manifestantes voltaram às ruas na maior cidade do país e em outros locais. Não há novos registros de mortes. Também houve protestos em frente à embaixada nigeriana em Pretoria, na África do Sul. Desde que começaram, os atos chegaram a bloquear o acesso ao Banco Central e ao aeroporto Murtala Muhammed, em Lagos, e ameaçaram invadir o Parlamento da capital, Abuja.

Manifestantes fazem homenagem aos mortos pela polícia durante protesto em frente ao aeroporto internacional de Lagos, na Nigéria
Manifestantes fazem homenagem aos mortos pela polícia durante protesto em frente ao aeroporto internacional de Lagos, na Nigéria - Benson Ibeabuchi - 19.out.2020/AFP

A pauta se expandiu do combate à violência policial para incluir a crise econômica —há fotos que mostram cartazes questionando o preço pago por itens básicos, como arroz.

As ruas de diversas cidades nigerianas têm sido palco dos atos liderados sobretudo por jovens. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 60% da população nigeriana tem menos de 24 anos.

Tanto a ONU quanto a União Europeia condenaram a violência no país. “Existe pouca dúvida acerca do uso excessivo da força que resultou na injusta morte por arma de fogo, pelas Forças Armadas nigerianas”, afirmou nesta quarta a alta comissária da ONU para os direitos humanos, Michelle Bachelet.

O secretário-geral da entidade, António Guterres, pediu “o fim da violência policial e dos abusos” no país.

“É alarmante saber que várias pessoas acabaram mortas e feridas durante os protestos. É crucial que os responsáveis pelos abusos sejam levados à Justiça”, afirmou Josep Borrell, alto representante da União Europeia para Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, espécie de chanceler do bloco europeu.

Os protestos ganharam força quando tomaram conta das redes sociais. A hashtag #EndSars, que existe no Twitter pelo menos desde 2017, explodiu após ser compartilhada por influenciadores locais.

Os atos receberam apoio de personalidades como a cantora Rihanna, o rapper Drake e o candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, que pediu que o presidente nigeriano cesse a repressão violenta. Segundo Biden, os manifestantes estão “pacificamente pedindo a reforma da polícia e tentando acabar com a corrupção na democracia”.

Parte do financiamento dos atos parece vir da internet. Jack Dorsey, fundador e presidente do Twitter, postou no dia 14 uma mensagem que pedia doações de bitcoins para "ajudar a #EndSars”, com um link para uma iniciativa de financiamento coletivo, que nesta quarta não estava mais no ar.

A hashtag fazia referência à Sars, esquadrão da polícia que teria como finalidade combater crimes violentos. A sigla remete a "esquadrão especial anti-roubo", em tradução livre do inglês.

No documento publicado pela Anistia Internacional em junho, chamado "Nigéria: Hora de Acabar com a Impunidade”, a ONG denuncia torturas e outras violações cometidas por integrantes do grupo.

"A falha ou o descompromisso das autoridades em produzir as mudanças necessárias para que as polícias exerçam seu papel na segurança de todas e todos sem discriminação têm potencial desestabilizador. A população tem o direito de reagir, de se manifestar e não deve sofrer ataques ou represálias dos agentes do estado", disse à Folha Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia no Brasil.

O relatório da entidade identifica uma série de padrões de abusos cometidos pelo esquadrão: tortura, extorsão e intimidação a jornalistas, por meio de, por exemplo, prisões. Também afirma que as principais vítimas dos abusos eram jovens, mesmo perfil dos atuais manifestantes.

“A Anistia documentou ao menos 82 casos de tortura, maus tratos e execuções pela Sars. A maioria das vítimas é formada por homens jovens entre 28 e 35 anos, pobres e de grupos vulneráveis. São torturados para extrair informação e ‘confissões’ ou por punição a supostas ofensas”, afirma o documento.

O relatório diz ainda que a prática de tortura era sistêmica e que algumas bases da Sars eram chamadas de “câmaras de tortura” ou apelidadas de “templo” ou “teatro”. Ainda há a suspeita de que as ações eram ordenadas por “oficiais do alto escalão”. Em 2017, o Senado nigeriano prometeu investigar a força, e em 2018 o então vice-presidente prometeu reformá-la.

Em resposta às manifestações, o governo encerrou a Sars —mas em seu lugar criou uma outra força, a Swat, para “tapar o buraco”, segundo defenderam as autoridades.

Com informações da AFP e da Reuters

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