Quatro anos após acordo de paz, Colômbia vê reorganização do crime organizado

Com menos registros de homicídios, país vive nova onda de violência nos últimos meses

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Buenos Aires

As fortes chuvas que caíram em quase toda a Colômbia no dia 2 de outubro de 2016 pareciam um mau agouro. Naquele dia, a população decidiria, por meio de um plebiscito, se o acordo que havia sido elaborado pelo Estado e a então guerrilha das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) seria colocado em prática.

As pesquisas previam uma vitória apertada do "sim". Escolher a opção de terminar com uma guerra de mais de 50 anos que deixara 220 mil mortos parecia óbvia. Ainda mais depois de meses de propaganda do governo do então presidente Juan Manuel Santos, amparado por forte apoio internacional.

Inscrição "Farc assassina" cobre grafite de rosto do ex-presidente colombiano Albaro Uribe (2002-2010) nas ruas de Bogotá
Inscrição "Farc assassina" cobre grafite de rosto do ex-presidente colombiano Albaro Uribe (2002-2010) nas ruas de Bogotá - Juan Barreto - 5.set.20/AFP

Só que, naquele dia, ganhou o "não". A campanha para a rejeição do documento havia sido liderada pela figura política mais popular do país, o ex-presidente Álvaro Uribe (2002-2010). Seu discurso e o de seu partido, o então minoritário Centro Democrático, eram de que o acordo "entregava o país às Farc" e fazia demasiadas concessões à guerrilha ao criar um tribunal especial que não distribuiria penas de prisão, apenas de reparação.

Uribe também aproveitou o conservadorismo de parte da sociedade para propagar que o acordo, em suas cláusulas sobre a reinserção de guerrilheiros na sociedade, pedia igualdade de tratamento em relação a gênero e orientação sexual. Os apoiadores de Uribe e votantes do "não" compraram, então, seu discurso de que o acordo era a favor da chamada "ideologia de gênero" e o rejeitaram.

E, sim, as chuvas, torrenciais principalmente na costa do país, região geralmente mais progressista, tiveram seu papel —levando à abstenção de 62,6% dos eleitores.

O resultado final foi a vitória do "não", por 50,2%, contra 49,8%. Se houve comemoração dos uribistas, também houve perplexidade por outro lado. Bogotá viu manifestações, naquela noite, de festa e de desilusão, com gente chorando agarrada às suas bandeiras brancas.

Enquanto Uribe começava a articular a candidatura do atual presidente do país, Iván Duque, um dos porta-vozes do "não", Juan Manuel Santos recorreu à Constituição, que dava poder ao presidente para aprovar o acordo apenas com o OK do Congresso. O texto foi levado ao Parlamento, que enfim o aprovou, no dia 30 de novembro.

Quatro anos depois, a Colômbia é um país bem menos violento. Se em 2012, quando o acordo de paz começou a ser debatido entre as duas partes, a taxa de homicídios era de 35,03 por cada 100 mil habitantes, em 2019 foi de 25,05/100 mil habitantes (dados do Ministério de Defesa).

Mais de 85% dos guerrilheiros das Farc entregaram suas armas e entraram para a política ou nos programas de reinserção no mercado de trabalho estabelecidos no acordo. Não houve mais bombas em centros comerciais ou em locais de grande concentração de gente.

O texto garantiu, também, que neste mandato e no próximo, o partido Farc (Força Alternativa Revolucionária do Comum) tenha asseguradas dez vagas no Congresso. A partir de então, terá de conquistar seu espaço nas urnas.

Do lado negativo, porém, há uma nova onda de violência, perpetrada nos últimos meses por dissidências da ex-guerrilha associadas a outras facções criminosas (as chamadas Bacrim) e a ex-paramilitares.

Esses grupos ocuparam o espaço das Farc nas rotas do narcotráfico internacional e agora estão revivendo os assassinatos em massa que, durante os anos da guerra, serviam para assustar civis e demarcar território.

Segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e a Paz (Indepaz), entre janeiro e setembro deste ano houve 60 assassinatos coletivos, que resultaram na morte de 246 civis. Além disso, passaram a ser cada vez mais numerosos os assassinatos de líderes comunitários ou de ambientalistas, que costumam denunciar os delitos das facções. Só em 2020, foram 215 homicídios dessas lideranças.

"Não dá para comparar a violência de hoje com a de antes do acordo. Os números mostram que houve uma grande redução nos homicídios. Ainda assim, isso preocupa porque, além das vidas que se perdem, essas mortes ajudam a propaganda política anti-acordo de paz", diz à Folha o analista político Mauricio Vargas.

Relatório da ONG Human Rights Watch (HRW) de julho aponta para outras consequências do fortalecimento e da reorganização desses grupos. Eles vêm exercendo controle de grande parte do território e usando a pandemia como desculpa para impor toques de recolher e controle de mobilidade social.

"O Estado colombiano ainda não conseguiu ocupar o espaço vazio deixado pela desmobilização das Farc, e essas forças criminosas estão avançando. Substituem o Estado no controle da sociedade e ao mesmo tempo impõem as regras que os beneficiam para seus atos delitivos", diz Juan Pappier, da HRW.

Isso ocorre, principalmente, nos departamentos de Arauca, Antioquia, Norte de Santander, Catatumbo, Chocó e Meta.

Há, também, consequências políticas. Duque, apesar de ser uribista e ter feito campanha pelo "não", tem sido obrigado a implementar o acordo, uma vez que ele foi agregado à Constituição.

"A esquerda gosta de dizer que ele não está fazendo nada, mas não é verdade. Há coisas que o incomodam, como a Justiça especial, e ele tentou diminuir seu poder, mas não conseguiu. Creio que, sim, está avançando no caso da reinserção dos ex-combatentes. Fez investimentos importantes na capacitação dessas pessoas", diz Vargas.

Outra consequência é uma mudança na cultura política colombiana e em sua forma de ver a esquerda.

"A Colômbia nunca teve uma esquerda significativa, um presidente abertamente esquerdista, porque as pessoas sempre identificaram a esquerda com a violência das guerrilhas, e isso está mudando. Agora temos protestos dos jovens, antes não havia manifestações de rua anti-governo. Também temos uma centro-esquerda que vem crescendo como opção", diz Vargas.

De fato, um dos mantras da campanha eleitoral de Duque era não deixar que seu opositor, um ex-guerrilheiro abertamente de esquerda, Gustavo Petro, vencesse porque "o país iria virar uma Venezuela". Foi eficiente, e Petro foi derrotado no segundo turno.

Mas, na mesma eleição, em 2018, surgiu com mais força um movimento de centro-esquerda em Bogotá, onde venceu o candidato presidencial Sergio Fajardo (que acabou em terceiro lugar no pleito).

E, um ano depois, sua candidata a vice-presidente, Cláudia López, que havia feito campanha pela paz, foi eleita a primeira mulher prefeita de Bogotá.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.