Racismo em alta mostra lado obscuro da civilizada Nova Zelândia, diz comediante

De origem filipina, James Roque é a face pública de campanha contra discriminação

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São Paulo

​ “Ah... Lembra do 'lockdown'? Todo mundo preso em casa, brigando com a família por causa de jogos de tabuleiro, ou tentando não se divorciar. Eram tempos divertidos.”

Assim começa um vídeo do comediante James Roque, 29, nascido nas Filipinas e que migrou ainda criança para a Nova Zelândia.

O comediante neozelandês James Roque, de origem filipina, em um dos vídeos da campanha contra o racismo no país - NZ Human Rights Commission no YouTube

“Mas enquanto muitos estavam preocupados em não ficar sem álcool em gel ou papel higiênico, outros estavam preocupados com uma coisa ainda mais assustadora: racismo”, prossegue ele na peça.

O vídeo é parte de uma campanha lançada pela Comissão de Direitos Humanos da Nova Zelândia, ligada ao governo.

Batizada de “Racismo não é piada”, tem Roque, um dos principais nomes da comédia standup do país, como garoto propaganda.

A iniciativa busca combater um problema que não é novo na Nova Zelândia, mas que se agravou durante a pandemia: a discriminação contra as comunidades de descendentes asiáticos e de ilhas do Pacífico, que somam cerca de 15% da população.

“A Nova Zelândia projeta uma imagem liberal para o mundo, mas o racismo aqui existe em múltiplas faces”, diz Roque, em entrevista à Folha.

A eficiência no combate à Covid-19, a civilidade no debate político e o sorriso aberto da primeira-ministra Jacinda Ardern, reeleita neste mês por margem folgada, transformaram a Nova Zelândia numa espécie de ideal de sociedade para grande parte do planeta. Houve 25 mortes pelo coronavírus.

A pandemia, no entanto, reforçou um certo lado obscuro, e pouco conhecido internacionalmente, na nação de 5 milhões de pessoas.

Neozelandeses de fisionomia asiática, ou com nomes chineses, passaram a relatar episódios de discriminação, pelo simples fato de o coronavírus ter surgido na China.

Em julho, uma pesquisa da Universidade Massey, uma das principais do país, apontou que 24% dos entrevistados disseram que provavelmente deixarão de comer em restaurantes chineses. O mesmo percentual afirmou que se recusaria a entrar em um Uber caso o motorista tenha nome chinês.

Também aumentou a crônica hostilidade contra os maoris, povo originário do país. Cerca de 20% da população e relativamente mais pobres passaram a ser vistos de forma preconceituosa como propagadores da doença, em razão de seus índices mais altos de contaminação.

Uma das manifestações mais comuns, afirma Roque, são piadas e memes racistas nas redes sociais. Por isso, a decisão da Comissão de recrutar um comediante para atacar esse ponto.

“O público alvo são as pessoas que no fundo não são racistas, ou não cultivam sentimentos de discriminação, mas talvez ignorem o fato de que suas ações estão contribuindo para um sistema racista”, diz o comediante.

A ideia, afirma, é começar a combater o racismo pelas pequenas atitudes do dia a dia. “Especialmente na internet, há uma avaliação de que você sempre consegue se safar porque é apenas uma piada. Não há consequências. Mas você raramente pensa na pessoa que está na outra ponta”, diz.

Roque chegou à Nova Zelândia em 1999, quando tinha 8 anos de idade. Seu pai trabalhava numa fábrica, e a mãe era corretora de imóveis. Migraram atrás de melhores perspectivas profissionais, juntando-se a uma já numerosa comunidade filipina no país.

“Antes de chegar, eu lembro da Nova Zelândia como vi num comercial de leite, quando ainda morava nas Filipinas. Um lugar imaculado, cheio de belas montanhas e vacas e aquelas paisagens de 'Senhor dos Anéis'”, diz.

Ao se estabelecerem em Auckland, maior cidade do país, Roque percebeu que a realidade idílica era bem diferente, a partir de pequenos episódios de discriminação.

Para começar, a mãe não conseguiu emprego em sua área e passou a fazer bicos. No trânsito, o pai era chamado pejorativamente de “chinês” se fizesse algo errado. Na escola, sua merenda diferente era motivo de piada. “Eu não via ninguém que parecesse comigo na TV, ou pessoas em posições de poder, na economia ou na política”, lembra.

Roque estudou artes dramáticas e há cerca de dez anos começou na comédia standup, apresentando-se em teatros e programas de TV.

Para a campanha, ele gravou dez vídeos, todos entre 30 segundos e 1 minuto, que começaram a ser veiculados logo após a Nova Zelândia encerrar seu período de confinamento, em maio.

“A ideia nos vídeos é ser algo mais informal, e não dar sermão. Quando você dá um sermão, a pessoa para de ouvir você”, diz. Está em estudo uma segunda fase da campanha.

Uma crítica comum, e a que Roque buscou responder em um dos spots, é a de que combater o racismo nas piadas seria uma espécie de ditadura do politicamente correto.

“Frequentemente as pessoas que dizem isso vêm de uma posição privilegiada. Mas é só você encontrar um tema que é sensível para elas e inventar uma piada sobre isso que mudam de opinião na hora”, afirma.

O comediante vê com otimismo moderado a vitória eleitoral de Jacinda e o fato de o novo Parlamento ter maioria de esquerda.

Diz que a primeira-ministra demonstrou preocupação com a proteção a minorias na esteira do atentado contra duas mesquitas em Christchurch, em 2019, que deixaram 51 mortos.

“Estou otimista, mas cauteloso também. Como comediante, tenho um lado cínico. Sei como as pessoas são. Falar e fazer promessas é uma coisa, mas realizar é algo diferente”, afirma.

Ele diz que o governo pode fazer mais contra o racismo, mas primeiro tem que combater um certo sentimento de complacência da população.

“Na Nova Zelândia, quando o tema do racismo é levantado, muita gente fala: ok, mas você preferiria ir para os EUA? E eu respondo que não é porque lá é pior que aqui não seja uma questão.”

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