Trauma da eleição de Trump viu jornalismo reagir entre vingança e censura

Glenn Greenwald e Ben Smith veem no episódio Hunter Biden intensificação de vínculos entre mídia 'mainstream' e gigantes de mídia social

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São Paulo

Quatro anos atrás, a um mês da eleição americana, o Washington Post publicou um vídeo em que se ouvia Donald Trump dizendo que beijava e tocava mulheres "na boceta", sem resistência, por ser uma celebridade.

Meia hora depois, o WikiLeaks publicou os emails de John Podesta, que chefiava a campanha de Hillary Clinton, com revelações como o conteúdo das palestras da candidata para investidores do banco Goldman Sachs.

O então vice-presidente Joe Biden, à dir., ao lado do filho Hunter, na posse presidencial em 2009, em Washington
O então vice-presidente Joe Biden, à dir., ao lado do filho Hunter, na posse presidencial em 2009, em Washington - David McNew - 20.jan.09/AFP

As duas "surpresas de outubro", com acréscimos de informação, disputaram a cobertura dos principais veículos até que, a dez dias do dia da votação, o diretor do FBI anunciou que estava reabrindo uma investigação sobre outros emails, da própria Hillary, com impacto ainda maior.

Trump venceu, mas a extensa cobertura dada pelos principais veículos às revelações sobre sua adversária, feitas pelo WikiLeaks e sobretudo pelo FBI, assombraram o jornalismo americano pelos quatro anos seguintes.

Questionado se a experiência de 2016 levou ao tratamento dado agora ao noticiário recente sobre Hunter, filho do democrata Joe Biden, Ben Smith, colunista de mídia do New York Times, responde que sim —e se concentra no WikiLeaks.

"A mídia nos Estados Unidos sente que foi manipulada pelo WikiLeaks e pelo governo russo em 2016 e vinha se preparando para lutar novamente aquela luta", diz ele. "Quando Rudy [Giuliani, advogado de Trump] apareceu com esse estranho laptop [com emails de Hunter Biden], muitos concluíram que era uma repetição do WikiLeaks. E Trump esperava que fosse uma repetição do Wikileaks."

Mas o material publicado pelo New York Post a pouco menos de três semanas da eleição não envolvia o candidato democrata diretamente. "Era uma liberação mais normal de última hora, de oponente, e a mídia e o Twitter em particular reagiram exageradamente, em alguns aspectos."

Glenn Greenwald, falando um dia antes de se demitir do site The Intercept, concordou que 2016 está na origem do que acontece agora, mas avalia de outra maneira. "Houve muita crítica a jornalistas e a empresas de mídia social por permitirem reportagens legítimas a respeito daqueles documentos [do WikiLeaks], porque havia a percepção de que ajudaram Trump a vencer", diz.

"Jornalistas e mídia social assimilaram a crítica de que deveriam ter feito mais para evitar que o público soubesse desse material. Planejaram por quatro anos o que fariam para suprimir vazamentos de última hora. E essa foi, definitivamente, uma razão pela qual [jornalistas e mídia social] censuraram essa matéria."

No dia seguinte, o veto dos editores do Intercept a um texto de Glenn, defendendo a reportagem do New York Post, desencadeou a sua saída do site —que ele mesmo criou, mas é controlado pelo bilionário Pierre Omidyar, fundador do eBay.

Smith publicou no New York Times que a resistência bem-sucedida aos novos emails pela grande mídia "mainstream", de jornais como Wall Street Journal, marca o retorno de seu poder como "gatekeepers", porteiros da informação, controladores da agenda política, em 2020.

Glenn discorda. "De jeito nenhum. A grande mídia não tem poder. Se Facebook e Twitter não tivessem censurado, quase não teria feito diferença se New York Times ou NBC ignorassem. Quem tem o poder real não é a grande mídia, mas sim Facebook, Twitter e Google."

Questionados, tanto ele como Smith veem no episódio uma intensificação dos vínculos entre a mídia "mainstream" e os gigantes de mídia social.

"Se você perguntar ao Facebook qual é a competência que ele tem para determinar o que deve ser censurado, ele vai responder que trabalha em parceria com veículos, checadores", diz Glenn. "Então, sim, os veículos têm influência sobre Facebook, Google e Twitter. Mas ainda são estes que decidem."

Smith, por sua vez, concorda que grande mídia e mídia social se tornaram, juntas, os novos porteiros. "E eu acho que cada uma tem que descobrir o seu papel", diz ele, detalhando:

"Uma coisa chave é que a mídia social, sem bloquear ou excluir conteúdo, pode limitar a disseminação se houver dúvidas, o que é valioso. Enquanto isso, as instituições jornalísticas lembraram que têm o poder de ser pacientes, reportar e ficar em silêncio se não tiverem certeza."

Os dois jornalistas americanos preveem efeitos de longo alcance, para a mídia e para o próprio debate político nos EUA, do enfrentamento em torno dos emails de Hunter Biden.

"Acho que a forma como o Twitter se comportou vai persuadir os conservadores da necessidade de regulamentação da mídia social, embora eu não tenha certeza qual é a forma que isso tomaria", diz Smith.

“O fato de que essas empresas de tecnologia —que são realmente monopólios— trabalharam lado a lado com a mídia para evitar que os americanos soubessem de um material [emails] que agora todos reconhecem como autêntico é censura. Do tipo que você esperaria ver na China”, afirma Glenn.

Sobre o processo aberto pelo Departamento de Justiça de Trump contra Julian Assange, fundador do WikiLeaks, ambos concordam que ele deve prosseguir, mesmo que Biden vença.

"O governo Trump tem sido muito duro com ele, num caminho que eu acho que pode colocar jornalistas em perigo, e minha expectativa é que Biden vá manter assim", diz Smith.

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