Descrição de chapéu The New York Times

Venezuela, antiga gigante do petróleo, chega ao fim de uma era

Colossal setor que moldou o país quase parou devido a graves erros de gestão e às sanções dos EUA

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Carimbas (Venezuela) | The New York Times

Pela primeira vez em um século, não há sondas procurando petróleo na Venezuela. Poços que antes exploravam as maiores reservas do mundo estão abandonados ou deixaram de emitir gases tóxicos que lançam um brilho alaranjado sobre cidades decadentes.

As refinarias que antes processavam petróleo para exportação são cascos enferrujados, vazando o produto que tinge de preto o litoral e cobre a água com um brilho oleoso. A escassez de combustível levou o país à paralisação. Nos postos de gasolina, as filas se estendem por quilômetros.

O colossal setor de petróleo da Venezuela, que moldou o país e o mercado internacional de energia durante um século, quase parou, com a produção reduzida a gotas, devido a anos de graves erros de gestão e às sanções dos Estados Unidos.

Fumaça de refinaria em El Palito, na Venezuela
Fumaça de refinaria em El Palito, na Venezuela - Adriana Loureiro Fernandez/The New York Times

O colapso está deixando para trás uma economia destruída e um meio ambiente devastado e, segundo muitos analistas, encerrando a era da Venezuela como potência energética. "Os dias da Venezuela como petroestado acabaram", disse Risa Grais-Targow, analista do Eurasia Group, consultoria de risco político.

O país que há uma década era o maior produtor de petróleo da América Latina, ganhando cerca de US$ 90 bilhões (R$ 505 bilhões) por ano com as exportações, deverá arrecadar cerca de US$ 2,3 bilhões (R$ 12,91 bilhões) até o final deste ano —menos que o valor agregado que os migrantes venezuelanos fugidos da devastação econômica do país enviarão para sustentar suas famílias, de acordo com Pilar Navarro, economista em Caracas, à capital da Venezuela.

A produção é a menor em quase um século, depois que as sanções americanas forçaram a maioria das empresas petrolíferas a parar de perfurar ou de comprar petróleo venezuelano —e mesmo esse gotejamento pode secar em breve, alertam analistas.

"Sem perfuração, sem empresas de serviços e sem dinheiro, é muito difícil manter até os níveis atuais de produção", diz David Voght, chefe da consultoria de petróleo IPD Latin America. "Se a situação política do país não mudar, poderá chegar a zero."

O declínio reduziu de forma irreconhecível um país que há apenas uma década rivalizava com os Estados Unidos em influência regional. Também está revelando uma cultura nacional definida pelo petróleo, fonte de dinheiro que antes parecia infinita; ele financiou obras públicas monumentais e a corrupção generalizada, bolsas de estudo generosas e viagens de compras luxuosas a Miami.

A falta de gasolina paralisante causou a irrupção de dezenas de protestos diários na maioria dos estados venezuelanos nas últimas semanas.

Em Caracas, as remessas periódicas de combustível do Irã, pagas com as reservas de ouro remanescentes do país, dão uma aparência de normalidade por algumas semanas de cada vez.

Mas os moradores da zona rural desafiaram o bloqueio da pandemia e fecharam estradas, entraram em confronto com a polícia por suas demandas pelo mínimo de combustível de que precisam para sobreviver.

Em todas as cidades petrolíferas da Venezuela, o petróleo cru preto pegajoso que antes fornecia empregos e mobilidade social está envenenando o sustento dos residentes.

Em Cabimas, cidade às margens do lago Maracaibo que já foi um centro de produção para os prolíficos campos da região, o petróleo vazado de poços e dutos subaquáticos abandonados recobre os caranguejos que ex-petroleiros tiram do lago com as mãos enegrecidas.

Quando chove, o óleo que vazou para o sistema de esgoto sobe por bueiros e ralos, fluindo com a água da chuva pelas ruas, manchando as casas e enchendo a cidade com seu mau cheiro.

A desolação de Cabimas marca a rápida queda de uma cidade que há apenas uma década era uma das mais ricas da Venezuela. Durante os anos de expansão, a PDVSA, empresa petrolífera estatal, distribuiu benefícios aos residentes de cidades petrolíferas como Cabimas, incluindo comida grátis, acampamentos de verão e brinquedos de Natal. Construiu hospitais e escolas.

Agora, dezenas de milhares de trabalhadores da empresa falida foram reduzidos a desmontar instalações de petróleo para sucata e vender seus macacões, estampados com o logo da empresa, para sobreviver.

O fim do papel central do petróleo na economia da Venezuela é uma reversão traumática para um país que, em muitos aspectos, definia um petroestado. Depois que grandes reservas foram localizadas perto do lago Maracaibo em 1914, trabalhadores do petróleo dos EUA invadiram o país.

Eles ajudaram a construir muitas cidades venezuelanas e trouxeram o amor pelo beisebol, o uísque e os grandes carros que consomem muita gasolina, diferenciando o país para sempre de seus vizinhos.

Como força motriz na fundação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo em 1960, a Venezuela ajudou as nações árabes a assumir o controle de sua riqueza em petróleo, moldando o mercado global de energia e a ordem geopolítica nas décadas seguintes.

Mesmo naqueles dias agitados, o proeminente ministro do Petróleo da Venezuela, Juan Pablo Pérez Alfonzo, advertiu que havia armadilhas na repentina riqueza do petróleo: ela poderia levar ao endividamento excessivo e à destruição das indústrias tradicionais.

"É o excremento do diabo", declarou Pérez Alfonzo. "Estamos nos afogando nos excrementos do diabo."

Nos anos que se seguiram, apesar das abundantes receitas do petróleo, a Venezuela enfrentou uma montanha-russa de dívidas recorrentes e crises financeiras.

A riqueza também não ajudou a diminuir a corrupção ou a desigualdade, e quando um ex-paraquedista, Hugo Chávez, apareceu no cenário nacional na década de 1990, prometendo uma revolução que colocaria o petróleo da Venezuela a serviço de sua maioria pobre, ele cativou a nação.

Logo depois de se eleger presidente, em 1998, Chávez usou a respeitada empresa estatal de petróleo do país para seu programa de desenvolvimento radical. Demitiu quase 20 mil profissionais, nacionalizou ativos de propriedade estrangeira e permitiu que seus aliados saqueassem as receitas do petróleo.

A problemática indústria entrou em queda livre no ano passado, quando os EUA acusaram o sucessor e protegido de Chávez, Nicolás Maduro, de fraude eleitoral e decretaram severas sanções econômicas para retirá-lo do poder.

Logo, os parceiros petrolíferos da Venezuela, banqueiros e clientes romperam relações, e a produção despencou a um ritmo que superou a desaceleração do Iraque durante as guerras do Golfo e a do Irã após a Revolução Islâmica.

As sanções forçaram as últimas empresas petrolíferas americanas no país a interromperem a perfuração. Elas poderão deixar totalmente a Venezuela em dezembro se o governo Trump encerrar suas isenções de sanções.

Para compensar a perda de receita, Maduro se voltou para a mineração ilícita de ouro e o comércio de drogas para permanecer no poder, de acordo com o governo dos EUA.

A retirada de Maduro do petróleo deixou a economia venezuelana comparável à da República Democrática do Congo, país que tem sido atormentado por conflitos civis desde a independência.

Mas a transição permitiu que Maduro mantivesse a lealdade dos militares e resistisse às punitivas sanções americanas, disse Grais-Targow, a analista. Os custos dessa contração econômica foram arcados pela população, disse ela.

Mais de 5 milhões de venezuelanos, ou 1 em cada 6 residentes, fugiram do país desde 2015, criando uma das maiores crises de refugiados do mundo, de acordo com a ONU.

A Venezuela tem hoje a maior taxa de pobreza da América Latina, ultrapassando o Haiti neste ano, de acordo com um estudo recente das três principais universidades venezuelanas.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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