Cinquenta dias antes da eleição americana, a Folha começou a publicar a série de reportagens “50 estados, 50 problemas”, que se debruça sobre questões estruturais dos EUA e presentes na campanha eleitoral que decidirá se Donald Trump continua na Casa Branca ou se entrega a Presidência a Joe Biden.
Até 3 de novembro, dia da votação, os 50 estados do país serão o ponto de partida para analisar com que problemas o próximo —ou o mesmo— líder americano terá de lidar.
Era para ser uma carta protocolar, oficializando para a gestão Donald Trump o consentimento do estado de Washington à recepção de refugiados em 2019. Mas o governador Jay Inslee recorreu até a poesia para expressar sua desaprovação às constantes reduções federais das metas de recepção a essas vítimas de conflitos e perseguição. No documento, citou o poema de Emma Lazarus inscrito no pedestal da Estátua da Liberdade em 1903, que chamou o monumento —e, metaforicamente, a nação— de “mãe dos exilados”.
Ferrenho crítico de Trump e de suas políticas anti-imigração, o democrata ganhou projeção nacional em 2017 ao desafiar —e conseguir suspender— na Justiça uma das primeiras medidas do presidente após tomar posse: o veto à entrada de pessoas vindas de sete países, quase todos muçulmanos.
Desde 1975, Washington recebeu quase 150 mil refugiados de 70 países —os quais, segundo o governador Inslee diz na carta, “contribuem com todos os setores da economia e com o cenário cultural da região”.
Em 2019, o estado de 7 milhões de habitantes localizado na divisa com o Canadá foi o segundo dos EUA que mais acolheu essas vítimas de perseguição, atrás do Texas, tem uma população quatro vezes maior.
Esses refugiados são pessoas vindas de países como Afeganistão, Mianmar e Eritreia, que precisam solicitar com antecedência a autorização de entrada, geralmente com a chancela da ONU. Se aceitas, já chegam com documento de permanência.
Eles formam uma categoria separada dos “solicitantes de asilo”, aqueles que também se dizem vítimas de perseguição, mas que pedem o reconhecimento já estando em território americano —caso de muitos imigrantes da América Central que entram pelo México.
Durante quase quatro décadas, os EUA foram líderes no mundo no reassentamento de refugiados, tendo acolhido, de 1980 a 2017, 3 milhões de pessoas, mais que todos os países do mundo somados.
Isso mudou quando Trump chegou ao poder. Desde que assumiu, o presidente reduziu em 85% o teto anual de refugiados aceitos. Em 2018, o país foi ultrapassado pelo Canadá no ranking dos que mais reassentam no mundo.
No fim do mandato, Barack Obama estabeleceu a meta de 110 mil refugiados para o ano fiscal de 2017. Trump foi baixando esse valor até chegar a uma previsão de 15 mil para 2021. É o menor teto desde que o programa começou, em 1980.
O Departamento de Estado afirmou que a proposta reflete "o compromisso de priorizar a segurança e o bem-estar dos americanos, especialmente durante a pandemia" e que o governo foca o fim dos conflitos que geram os deslocamentos forçados e a assistência aos refugiados perto de suas casas.
No ano fiscal de 2020, a meta era de 18 mil, e foram admitidos de fato menos de 12 mil refugiados. Nem no pós-11 de Setembro, quando houve mais restrições à entrada, o número foi tão baixo: chegou a 27.100 em 2002. Ao mesmo tempo, o número de pessoas forçadas a sair de seus países só aumenta no mundo —chegou a um recorde de 79,5 milhões em 2019.
Trump também mudou o perfil desses refugiados em termos de religião. Se em 2016 46% deles eram muçulmanos, em 2019 eles eram apenas 16%.
Enquanto isso, em Washington, a chegada dos refugiados vem transformando a cara de algumas cidades. Como Tukwila, nos arredores de Seattle, na qual dois terços de seus 20 mil habitantes são de minorias étnicas —30 anos atrás, 80% dos moradores eram brancos.
Definida pela prefeitura como “diversa, tolerante e inclusiva”, a cidade é repleta de lojinhas, mercados e restaurantes administrados por imigrantes, especialmente vindos de Butão, Myanmar, Iraque e Somália.
Na campanha em que tenta a reeleição contra o democrata Joe Biden, Trump deixa claro que considera os refugiados um fardo. Em um comício em Minnesota, disse que seu adversário iria “transformar o estado em um campo de refugiados”, “sobrecarregando escolas” e “inundando hospitais”.
Também criticou a democrata Ilhan Omar, que chegou ao país como refugiada somali quando criança e hoje é deputada pelo estado.
Já Biden, um dos senadores responsáveis pela aprovação da lei de 1980 que estabeleceu a política de recepção a refugiados, promete aumentar o teto anual para 125 mil.
Ele afirma ainda que suspenderá o veto a imigrantes de países muçulmanos, que define como “moralmente errado” e sem evidências de que traga segurança aos americanos.
Seu programa de governo também recorre ao soneto do pedestal da Estátua da Liberdade, no trecho em que a “mãe dos exilados” é retratada como um farol para as “massas sedentas de ar puro”. “Entregue-os a mim (...) Minha luz mostrará o portão dourado”, diz o poema.
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