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Financial Times Eleições EUA 2020

A democracia pode fracassar em qualquer lugar, mesmo na América

Quando Trump sugere que não aceitará derrota, coloca valores do país sob pressão sem precedentes

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Gideon Rachman
Financial Times

Há anos os EUA são descritos como “líderes do mundo livre”. A eleição presidencial americana foi o exemplo rematado de democracia em ação. Mas estamos prestes a assistir a uma noite eleitoral diferente de qualquer outra. Pessoas em todo o mundo vão acompanhar atentamente não apenas a contagem dos votos mas qualquer sinal de que os resultados serão contestados nos tribunais ou nas ruas.

O fracasso da democracia é algo que a maioria dos americanos pensava que só acontecesse em outros países, mas as democracias podem falhar em qualquer lugar. As lições aprendidas com os esforços americanos vacilantes para “promover a democracia” no exterior podem aplicar-se também aos EUA.

Uma ideia comum é que a democracia diz respeito a mais do que o simples voto. Para que os resultados não sejam subvertidos ou anulados, a democracia precisa de uma imprensa livre, um setor de serviço público forte, tribunais independentes, um contexto constitucional seguro e, o que talvez seja o mais importante, uma cultura democrática em que os derrotados em eleições aceitam sua derrota.

O presidente Donald Trump durante comício em Rome, na Geórgia
O presidente Donald Trump durante comício em Rome, na Geórgia - Brendan Smialowski - 1º.nov.20/AFP

Todos esses elementos eram antes dados como certos e garantidos nos EUA. Mas talvez já não o sejam mais. Está em dúvida a disposição de Donald Trump de aceitar uma derrota. O presidente já indicou diversas vezes que não reconhecerá um resultado que considere “fraudado”. Muitos democratas pensam que as queixas de Trump não passam de fachada para ocultar seus próprios planos de fraudar a eleição.

Falar em uma eleição roubada é perigoso. A Belarus mostrou que, se milhões de pessoas creem que uma eleição é fraudulenta, elas podem sair às ruas, levando à paralisia social ou à violência política.

A ira diante de uma eleição fraudada é uma razão que leva democracias a desmoronar. Mas, se os custos de perder parecem altos demais, a disposição de aceitar uma derrota –mesmo que o pleito seja justo— também pode desaparecer. Tanto republicanos quanto democratas às vezes falam como se a própria sobrevivência dos EUA, ou das comunidades que representam, estivesse em jogo nesta eleição.

Algumas lideranças republicanas já começaram a dizer que a sobrevivência dos valores e do sistema que prezam é mais importante que a própria democracia. O senador Mike Lee, de Utah, escreveu recentemente no Twitter: “A democracia não é o objetivo. A liberdade, a paz e [a prosperidade] são os objetivos. Queremos que a condição humana prospere. A democracia levada ao extremo pode frustrar isso”.

Assistindo ao desenrolar desses acontecimentos, alguns diplomatas receiam que patologias políticas que eles antes pensavam ser restritas a democracias falidas no exterior estejam se manifestando em casa.

Philip Gordon, que foi funcionário de alto nível da administração de Barack Obama, recorda-se de tentar persuadir generais egípcios e líderes da Irmandade Muçulmana a coexistir no mesmo sistema político.

Seus esforços foram rejeitados. Cada um dos dois lados no Egito enxergava o outro como ameaça existencial, a ser derrotada a qualquer custo e por quaisquer meios que se fizessem necessários.

Agora, Gordon receia que a mesma lógica esteja enfraquecendo a democracia americana.

Fato preocupante, até mesmo o passo mais simples no processo –o próprio voto— parece falho. Pessoas em todo o país foram obrigadas a aguardar horas em filas para votar antecipadamente. Em vários estados o Partido Republicano dificultou o voto, especialmente o de membros de minorias raciais.

A colcha de retalhos das regras diferentes em cada Estado que regem como as pessoas votam e como os votos são contabilizados constitui receita de confusão. As alegações reiteradas de Trump de que os votos enviados por correio são suscetíveis a fraude lança as bases para que conteste os resultados do pleito.

Assim, é inteiramente possível que, assim como ocorreu em 2000, o resultado da eleição termine sendo decidido pela Suprema Corte. Essa possibilidade ressalta a importância crucial de um Judiciário independente em um sistema democrático.

Mas a corrida indecorosa para aprovar a nomeação de uma nova juíza ultraconservadora para a Suprema Corte, Amy Coney Barrett, indicada antes da eleição, corre o risco de fazer o órgão judicial supremo do país parecer apenas mais um instrumento da política partidária. Trump já deu indicações claras de que espera que Barrett faça qualquer decisão sobre a eleição pender em seu favor.

Em 2000, o candidato democrata Al Gore aceitou uma decisão da Suprema Corte contra ele e a favor do republicano George W. Bush, tomada por cinco votos contra quatro.

Não houve protestos políticos significativos. Mas parece improvável que os democratas aceitem outra derrota imposta pela Suprema Corte se enxergarem as queixas republicanas como infundadas e a Corte como tendo sendo injustamente lotada de juízes conservadores.

O sentimento de ultraje no Partido Democrata vai se intensificar se Trump perder no voto popular, mas chegar à vitória por meio do Colégio Eleitoral, que contabiliza os votos Estado por Estado.

Esse sistema, que no passado parecia não passar de uma excentricidade histórica charmosa, agora está cada vez mais parecendo um artifício para frustrar a vontade da maioria.

Some-se a representação desproporcional de Estados pequenos, de viés republicano, no Senado –que, por sua vez, confirma os juízes indicados à Suprema Corte—, e o resultado é uma receita para uma crise de legitimidade na democracia americana.

Algo desse tipo também representaria uma crise profunda para aliados e admiradores dos EUA. Quando o país se descreve como “líder do mundo livre”, não está apenas se vangloriando. As democracias do mundo de fato buscam apoio, liderança e inspiração nos Estados Unidos.

Quando esforços para promover a democracia no Egito ou no Iraque fracassam, é uma tragédia para o país em questão. Se a democracia fracassar nos Estados Unidos, será uma tragédia global.

Tradução de Clara Allain 

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