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A hora de Dom Quixote no Peru

Atual presidente do país, Francisco Sagasti é assim chamado por seu aspecto físico e seu estilo pessoal

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Fabián Bosoer

Cientista político, jornalista, editor-chefe da seção de opinião do diário argentino Clarín, professor e pesquisador da Universidad Nacional de Tres de Febrero e professor convidado na Uade e Flacso.

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"A recente crise política no país andino mostra que não há mais 'salvadores da pátria' que sobem ao poder através de golpes de Estado e isso é bom; o Peru está sendo resgatado da literatura, da cultura e do punhado de políticos que não estão incrustados com a corrupção. Parece que eles encontraram a figura certa, um presidente interino –Francisco Sagasti– a quem chamam de 'Dom Quixote', para colocar o processo político de volta aos trilhos após a vacância institucional causada pela destituição de Martín Vizcarra."

É inevitável a referência à frase que Mario Vargas Llosa colocou na boca de seu personagem principal –Zavalita– em "Conversa no Catedral": todos se perguntam "em que momento o Peru se ferrou?" para abordar a crise institucional que surgiu após a destituição do presidente Vizcarra por uma maioria parlamentar.

Tudo começou a dar errado 30 anos atrás, com a chegada de Alberto Fujimori à Presidência, em 1990, quando ele decidiu fechar o Congresso e se tornar um ditador eleito em abril de 1992. Depois de quase uma década no poder, deixou uma democracia estilhaçada.

Dos nove presidentes que o Peru teve desde o fim do regime militar em 1980, sete foram condenados, acusados de escândalos ou têm investigações judiciais em curso.

Fujimori cumpre sentenças por crimes e corrupção. Alan García se suicidou antes de ser detido. Alejandro Toledo está em liberdade sob fiança nos EUA. Ollanta Humala está em liberdade condicional.

Mais recentemente, Pedro Pablo Kuczynski foi destituído pelo escândalo da Odebrecht. Vizcarra, também removido, é investigado por suposto suborno quando era governador, e o efêmero Manuel Merino, pela morte de dois manifestantes.

Manuel Merino, que assumiu interinamente a Presidência do Peru após a saída de Martín Vizcarra, faz pronunciamento na TV
Manuel Merino, que assumiu interinamente a Presidência do Peru após a saída de Martín Vizcarra, faz pronunciamento na TV - Presidência do Peru - 15.nov.2020/Reuters

Somente Fernando Belaúnde Terry (1980-1985) e Valentín Paniagua, que governou por oito meses em 2000-2001, saíram ilesos deste naufrágio de sua classe política.

A derrocada dos partidos políticos tradicionais também faz com que os interesses pessoais e faccionais prevaleçam no Congresso peruano.

Mas isso também pode ser visto de outra forma, ampliando o foco de sua história: os últimos 20 anos são um dos mais longos períodos de democracia no Peru, considerando que nos séculos 19 e 20 predominaram regimes militares ou civis autocráticos.

Da mesma forma, como em outros países da região, as instituições representativas e as regras democráticas sobreviveram a três colapsos simultâneos nesse período, do lado do regime político e do lado do modelo socioeconômico: o do "presidencialismo de emergência", jogado como fórmula de governança, o das formas tradicionais de representação política dominadas pelos grandes partidos, e o das reformas neoliberais, como um programa que deu direção à ação governamental.

Em sua conjunção, e a fim de acrescentar mais um artefato conceitual às categorias com as quais a ciência política procurou explicar as derivações das democracias latino-americanas naqueles anos, chamamos o modelo que dominou durante a última década do século passado de "presidencialismo de mercado" (um composto de decisão política e de desestatização da economia).

As fórmulas de resposta que sobreviveram ao colapso desses "presidencialismos de mercado" podem ser provisoriamente chamadas de "neoparlamentarismos de crise" ou "neoparlamentarismos de transição" e se definem como uma forma híbrida de sistema presidencial com uma base parlamentar e componentes variáveis do parlamentarismo no funcionamento do sistema político, com uma busca de novos equilíbrios no aspecto econômico-social.

Outro fator a ser levado em conta é a tensão existente entre esses "parlamentarismos de transição" e o regime político e a cultura política tradicional, que seguem sendo fortemente presidencialistas.

O fato de que presidentes que emergiram do "poder parlamentar" puderam contar com mais recursos institucionais que presidentes consagrados pelo voto popular, mas que foram fortemente desgastados no exercício de seu governo, não deixa de ser considerado, nesse caso, uma anomalia.

No caso peruano, se há 20 anos foi a crise de hiperpresidencialismo consumada por Fujimori que levou ao esforço de resgate parlamentar, agora é o próprio Congresso que deve reconstruir a danificada instituição presidencial.

Francisco Sagasti, que assumiu a Presidência do Peru no lugar do então interino Manuel Merino, participa de conferência da APEC (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) em Lima
Francisco Sagasti, que assumiu a Presidência do Peru no lugar do então interino Manuel Merino, participa de conferência da APEC (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) em Lima, realizada online devido à pandemia de coronavírus - Presidência do Peru - 20.nov.2020/AFP

As esperanças do resgate estão depositadas em um novo presidente que surgiu do Congresso, Francisco Sagasti Hochhausler; um engenheiro industrial de 76 anos com vasta experiência acadêmica e administrativa em seu país e em organizações internacionais, que parece ser uma figura apropriada para liderar um governo de transição até as eleições de abril do próximo ano.

Ele é moderado, com capacidade intelectual e compromisso social, e não –até o momento– salpicado por denúncias de corrupção. Já faz muito tempo que uma figura dessa estatura não aparece no firmamento da liderança política latino-americana.

Sagasti é chamado de 'Dom Quixote' por seu aspecto físico e seu estilo.

E ele começou bem: ao assumir o cargo, expressou sua vergonha pelo comportamento da classe política de seu país e reivindicou aos jovens da "geração do Bicentenário" que saíssem às ruas para exigir o respeito pela vontade popular.

A nova chefe do gabinete, que incluirá oito mulheres em um total de 19 ministérios, é a advogada Violeta Bermúdez de 59 anos, uma especialista em questões constitucionais e de gênero.

A equipe ministerial também inclui a primeira mulher, Nuria Esparch, como chefe do Ministério da Defesa e três ex-colaboradoras do presidente deposto Vizcarra.

Martín Vizcarra, que sofreu processo de impeachment e foi afastado da Presidência do Peru, em discurso no Congresso
Martín Vizcarra, que sofreu processo de impeachment e foi afastado da Presidência do Peru, em discurso no Congresso - Presidência do Peru - 9.nov.2020/Reuters

Já não há mais homens ou mulheres providenciais que se consideram "salvadores da pátria", e é um fato que deve ser destacado.

Talvez também não seja ruim que o piloto da tempestade que pode trazer aquele navio para um bom porto tenha algo do Ingenioso Hidalgo, entre literatura e política, imaginando outros mundos possíveis para fazer seu caminho através de tantos infortúnios e calamidades.

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