Advogado de Trump, Giuliani foi de símbolo de NY a testa de ferro da narrativa de fraude

Sem cargo oficial no governo, ex-prefeito é um dos grandes disseminadores de desinformação e teorias conspiratórias

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Washington

Rudolph Giuliani estampou mais uma vez as redes sociais e parte da imprensa americana. Mas não como esperava. O ex-prefeito de Nova York e advogado de Donald Trump ganhou os holofotes na quinta-feira (19) sob um líquido escuro que escorria na lateral de seu rosto enquanto defendia a tese mentirosa de que a eleição nos EUA fora fraudada.

De novo sem apresentar provas, Giuliani apareceu em público para dizer que a disputa que deu a vitória a Joe Biden está marcada por irregularidades e precisa ser revertida, mas o que chamou a atenção —e virou piada na internet— foi a cena de seus olhos arregalados, enquanto linhas pretas se desenhavam ao longo de suas bochechas, numa mistura de suor e tintura de cabelo.

Giuliani tem sofrido uma transmutação de imagem que ficou mais acentuada desde que se tornou advogado de Trump, em abril de 2018.

O advogado de Donald Trump e ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, durante a entrevista coletiva em Washington
O advogado de Donald Trump e ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, durante a entrevista coletiva em Washington - Drew Angerer - 19.nov.20/Getty Images/AFP

Aos 76 anos, passou de o "prefeito da América", na esteira de sua atuação após os atentados do 11 de Setembro, a testa de ferro de uma narrativa fantasiosa sobre fraude na mais recente corrida à Casa Branca.

Eleito duas vezes prefeito de Nova York com a plataforma de combate ao crime, Giuliani comandou a maior cidade dos EUA de 1994 a 2002 e protagonizou uma das mais memoráveis cenas de sua trajetória política —até agora: a caminhada assertiva que fizera em meio aos escombros do World Trade Center, pouco depois do ataque terrorista que matou milhares de pessoas em 2001.

De terno e gravata cobertos por poeira e cinzas, Giuliani apareceu cercado de repórteres e chegou a consolar um dos socorristas desolado com a tragédia que marcou a história americana.

Os atos tiveram mais repercussão, inclusive, do que as ações iniciais do então presidente George W. Bush e fizeram aumentar a popularidade de Giuliani.

Em entrevista à CNN, quase 15 anos depois, o ex-prefeito disse que aquele era um momento em que precisava mostrar força e firmeza para a população, mensagem bem diferente da transmitida pelo rosto quase desesperado que marcou a semana do time jurídico de Trump.

Na década de 1980, Giuliani fez carreira como procurador que enfrentava mafiosos e o crime organizado e, ao chegar à Prefeitura de Nova York, seguiu o mesmo roteiro. Ganhou notoriedade com a política de segurança conhecida como "tolerância zero", que consistia em punir qualquer tipo de delito, inclusive os mais leves, como pular a catraca do metrô.

A iniciativa reduziu a criminalidade —só os homicídios na cidade caíram 65%— mas foi também bastante criticada por usar abordagens agressivas, principalmente contra a população de negros e latinos, atingida desproporcionalmente pela violência policial no país.

Os protestos antirracismo após o assassinato de George Floyd, em maio, levaram a política de segurança implementada por Giuliani mais uma vez ao centro do debate sobre o abuso da força policial contra minorias, e o ex-prefeito reagiu com críticas aos manifestantes.

Amigo e um dos principais representantes da base mais conservadora de Trump, Giuliani tem funcionado como arquiteto das versões ecoadas pelo presidente, mesmo que controversas ou completamente falhas, e é um dos grandes disseminadores de desinformação e teorias conspiratórias na imprensa e nas redes sociais.

Apesar de não ter cargo oficial no governo, atuou como interlocutor de Trump em diversas conversas com líderes estrangeiros —inclusive com Jair Bolsonaro, durante visita do brasileiro a Nova York, em 2019.

Giuliani esteve no centro das investigações sobre a interferência da Rússia nas eleições dos EUA e da ofensiva americana sobre o presidente da Ucrânia para investigar e obter informações contra Biden —o que levou Trump a enfrentar um processo de impeachment que acabou barrado pelo Senado, de maioria republicana.

A investida contra a família Biden ganhou novos contornos em outubro, também pelas mãos de Giuliani, quando o tabloide New York Post divulgou, às vésperas da eleição, reportagem que sugeria que o democrata havia usado seu cargo de vice-presidente no governo Obama para enriquecer seu filho Hunter.

Divulgado em outubro, o texto foi alvo de medidas incomuns do Facebook e Twitter, que limitaram seu alcance sob alegação do risco de desinformação, uso de material hackeado e divulgação de dados pessoais.

De acordo com o tabloide, que pertence a Rupert Murdoch, o material chegou por meio de Steve Bannon, ex-coordenador de campanha de Trump e preso neste ano por fraude, e, depois, também via Giuliani.

No mesmo mês em que tentou colocar mais combustível na reta final da eleição, o advogado apareceu em uma cena comprometedora no novo filme do personagem Borat, interpretado pelo ator Sacha Baron Cohen.

No trecho, ele é visto enfiando a mão nas calças e aparentemente tocando seus órgãos genitais na presença de uma atriz que ele acredita ser uma repórter de um programa de notícias conservador.

A história publicada pelo tabloide não teve grande impacto na corrida à Casa Branca, mas, agora, como comandante do time jurídico do presidente, o ex-prefeito de Nova York tem sido acusado por aliados de estar indo longe demais em uma cruzada contra o sistema eleitoral dos EUA que parece fadada ao fracasso.

Giuliani estimula Trump a seguir teorias conspiratórias mesmo depois que autoridades eleitorais americanas asseguraram que o pleito aconteceu de maneira segura, sem irregularidades.

De acordo com o jornal The New York Times, há assessores do presidente que acreditam que Giuliani está tentando tirar proveito financeiro da situação juridicamente perdida e teria pedido US$ 20 mil (R$ 108 mil) por dia para chefiar as ações que questionam os resultados da eleição.

O valor está acima do que é pago a advogados renomados de Nova York e Washington, por exemplo, que chegam a cobrar diárias de até US$ 15 mil (R$ 81 mil) caso trabalhem exclusivamente para um cliente.

Ainda segundo a reportagem, Giuliani nega que tenha pedido esse valor a Trump e diz que os acertos financeiros serão feitos somente no fim do processo.


Isto é Giuliani

1992 Quando era candidato a prefeito de Nova York, liderou um protesto de policiais brancos à paisana contra a proposta do prefeito negro da época de criar uma agência civil independente para investigar abusos policiais

2000 Quando já era prefeito, anunciou durante uma entrevista coletiva que estava se separando de sua esposa, Donna Hanover, sem antes notificá-la

2001 Graças à sua atuação após o ataque às Torres Gêmeas, foi laureado como um presidente em tempos de guerra —sua aprovação foi a 79%; a apresentadora Oprah Winfrey o saudou como “o prefeito dos Estados Unidos” e a revista Time o nomeou como a pessoa do ano

2016 Fez declarações contra o Black Lives Matter, que segundo ele é um movimento “inerentemente racista” e “anti-americano” porque “todas as vidas importam”

2019 Em uma entrevista na CNN, Giuliani negou que havia pedido à Ucrânia para investigar Joe Biden, mas segundos depois admitiu que tinha, sim, feito o pedido; o apresentador apontou a contradição e o entrevistado o chamou de “vendido” e de apoiador democrata

2020 Em uma cena da recém-lançada comédia “Borat 2”, Giuliani aparece se reclinando em uma cama, tirando a camisa e levando uma das mãos para dentro das calças na companhia de Tutar, a filha de 24 anos de Borat; a gravação foi uma peça da produção do filme, mas é real


Desde que assumiu a frente das ações, que correm em vários dos estados-chave em que Trump foi derrotado, Giuliani tem sofrido reveses e viu advogados desistirem de argumentar que a disputa não aconteceu de forma legítima.

Há pouca ou nenhuma perspectiva que qualquer um dos casos altere o resultado que deu a vitória a Biden por 306 a 232 votos no Colégio Eleitoral, segundo as projeções da imprensa americana —o resultado oficial será chancelado pelo colegiado em 14 de dezembro.

Acuado pelas seguidas derrotas, Trump agora tenta subverter o processo e fazer com que legisladores estaduais republicanos em Michigan, por exemplo, recusem-se a conceder o voto do estado a Biden.

Em 2008, antes de Giuliani desistir das prévias republicanas à Casa Branca, Biden —que disputava pelo lado democrata— disse que o ex-prefeito só sabia falar frases que contivessem "substantivo, verbo e 11 de Setembro." Resta saber até quando Giuliani vai insistir em discursos que não surtem mais efeito.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.