Descrição de chapéu Coronavírus

Depois de explosão de casos, curva do coronavírus recua na Argentina

País, que adotou quarentena rígida, relaxa medidas para combater a pandemia

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Buenos Aires

O governo argentino respira momentaneamente aliviado. Com os números de novos casos de coronavírus caindo desde o dia 23 de outubro, o presidente Alberto Fernández anunciou, nesta sexta-feira (6), o relaxamento das restrições para tentar combater a pandemia.

A fase de isolamento social, iniciada em 20 de março, vai ser substituída por uma etapa de distanciamento social —que retoma as atividades econômicas e sociais, mas mantém o monitoramento para manter a situação sob controle, segundo o ministério da Saúde.

A boa notícia da queda dos casos chegou depois de semanas, entre o fim de setembro e o começo de outubro, nas quais o vírus se espalhou pelo país (antes mais concentrados na região metropolitana de Buenos Aires) e houve um aumento repentino de infecções e mortes diárias.

Manifestante usa máscara com símbolo da bandeira argentina durante protesto em Buenos Aires - Ronaldo Schemidt - 23.set.20/AFP

"A melhor explicação para esse aumento repentino é a de que as aberturas do comércio e a flexibilização da quarentena a partir de julho/agosto provocaram isso, mas ainda há contextos das províncias que é preciso olhar com atenção para entender o que ocorreu", diz à Folha o infectologista Javier Farina, membro do conselho de assessores da Presidência para temas relacionados ao coronavírus.

A letalidade da pandemia continua alta, em 3%, segundo o ministério da Saúde, mas os contágios vêm caindo.

"Não compartilho a ideia de que a quarentena não funcionou. Nas primeiras semanas, funcionou e muito. A média de utilização das UTIs hoje é de 61%, e isso é parte do esforço de melhorar o aparato hospitalar durante o isolamento. Depois aprendemos que não é possível fazer uma quarentena eterna, pois nem a economia e nem as pessoas conseguem respeitar isso", diz.

Para o médico, o que ocorreu na Argentina no começo de outubro pode ser considerado "o pico" da doença, mas é preciso estar preparado para uma segunda onda, "por volta de março ou abril". E aí, se for o caso, usar a quarentena novamente. "A Espanha está fazendo isso e com êxito. Enquanto não houver vacina eficiente, creio que a quarentena continuará sendo um instrumento útil".

De todo modo, a leitura dos números não pode ser o único indicador da gravidade da pandemia no país. A Argentina continua sendo um país que testa muito pouco —são 7% da população, enquanto a Espanha testou 39% e o Reino Unido, 51%.

Uma das críticas que o governo recebe da oposição é a de não ter estabelecido, ainda, um sistema mais amplo de testes.

A Argentina fechou suas fronteiras aéreas em 20 de março, mesmo dia em que adotou uma dura quarentena nacional, em que apenas trabalhadores essenciais podiam sair de casa. No começo, de fato, funcionou, e o país foi citado entre os exemplos da região.

A partir de maio, no entanto, já havia sinais de irritação entre empresários e trabalhadores informais, insatisfeitos com o auxílio governamental.

Já o comportamento das pessoas, especialmente nas grandes cidades, também começou a demonstrar um desgaste, e a quarentena começou a ser desrespeitada, havendo aglomerações clandestinas.

Com o passar do tempo, esse incômodo se agravou, provocando manifestações. Os protestos começaram questionando a quarentena, mas acabaram abarcando outras insatisfações, como o mau desempenho do país na economia e a tomada de decisões polêmicas, como a de realizar uma reforma do sistema judiciário no meio da quarentena.

As manifestações, que têm se repetido nos fins de semana, passaram a mirar diretamente o governo, inclusive com a participação de políticos da oposição.

Ao mesmo tempo, aumentou, principalmente entre os jovens, o desrespeito às medidas de distanciamento social e uso de máscaras (ainda que obrigatório). Festas clandestinas se tornaram comuns, em lojas fechadas ou em apartamentos.

Houve também desrespeito à determinação de não promover reuniões familiares —houve, inclusive, um casamento de judeus ortodoxos em que o rabino e os noivos acabaram presos por descumprir a lei.

Aos poucos, o governo foi oficialmente flexibilizando atividades industriais, comerciais, horários de saídas recreativas e passeios com as crianças. Colocou-se especial ênfase e controle, no começo, na região metropolitana de Buenos Aires, que hoje, mesmo com as aberturas recentes, ainda tem o transporte público permitido apenas para os trabalhadores essenciais, e está sem previsão de retorno às aulas.

Entre os meses de abril e julho, mais de 97% dos casos ocorreram na região conhecida como Área Metropolitana de Buenos Aires, que engloba a capital federal e seu entorno.

No chamado "conurbano", que inclui a periferia da capital federal e os distritos pobres da província que o rodeiam, vivem mais de 16 milhões de pessoas e há mais de 1.800 favelas ou bairros pobres, com pouco acesso à água potável e sem possibilidades de respeitar o distanciamento social.

O agravamento da pandemia na província causou fricções políticas. Nos primeiros meses, o chefe de governo da cidade, Horacio Rodríguez Larreta, que é do partido do ex-presidente Mauricio Macri e um pré-candidato para as próximas eleições presidenciais, quis impedir que habitantes da província fossem à cidade, para tentar deter a disseminação do vírus em seu território.

Mas grande parte dos trabalhadores de comércios da cidade vivem na província. No caso das trabalhadoras domésticas, são mais de 80% delas.

Calcula-se que a pandemia tenha causado a perda de 280 mil empregos na Argentina. Como o governo de Alberto Fernández proibiu as demissões, os empresários que não aguentaram os gastos de seu negócio fechado acabaram pedindo falência.

A federalização da pandemia começou em agosto, quando Buenos Aires passou a mostrar uma concentração um pouco mais baixa, de 82% dos casos e o total das províncias, 18%. Em outubro, a região metropolitana tinha 34% e o resto das províncias, 66%.

Com regras de quarentena mais flexíveis por terem tido poucos casos até então, províncias muito populosas (Córdoba, Mendoza) ou com sistema de saúde mais fraco (Jujuy, Chaco) viram os números de contágios e mortes aumentarem rapidamente, levando hospitais à beira do colapso. Novas restrições foram tomadas, mas algumas tarde demais.

Isso fez com que, hoje, na Argentina, existam 24 tipos de barreiras distintas entre uma província e outra e com relação à capital federal. Para entrar e sair de cada uma delas, é preciso uma permissão diferente, que é concedida pelo governo local com requisitos diferentes.

Algumas pedem apenas teste de coronavírus recente, outras exigem quarentena logo que se atravessa a fronteira. Todas requisitam o preenchimento de formulários. Em alguns casos, a burocracia foi tanta, que impediu pais e filhos doentes de se encontrarem antes da morte.

Entre os casos que acabou sendo uma bandeira dos que reclamavam contra as duras medidas de restrição sanitárias está o de Solange Musse, 36, que tinha câncer de mama. Seu pai, Pablo, dirigiu desde a província de Neuquén até Córdoba para vê-la antes que morresse. Mesmo com essa justificativa, foi parado e demorado em várias fronteiras, e acabou chegando quando Solange já estava morta.

Percorrer a Argentina em carro ficou mais difícil do que sair do país. Algumas das províncias, como Jujuy, Catamarca e Formosa, ficaram praticamente isoladas por meses e ainda têm a entrada muito dificultada para os que não são moradores permanentes.

Apenas no último dia 17 de outubro, voltaram a operar alguns voos domésticos e retornaram alguns serviços de ônibus. Ainda assim, eles exigem que o passageiro leve o teste de coronavírus com resultado negativo realizado nos últimos três dias para poder embarcar.

Os voos internacionais também retornaram na mesma data, mas ainda de forma reduzida. Há alguns voos para os EUA e para a Europa e, desde a semana passada, para os países-limítrofes.

A Argentina exige a quem entra em seu território um teste de coronavírus realizado no país de origem 72 horas antes do embarque e uma declaração jurada em que se pede dados pessoais, de saúde e o modo como contatar essa pessoa enquanto esteja no país.

Segundo dados do ministério de saúde, na Cidade de Buenos Aires e na província de Buenos Aires, regiões consideradas mais críticas no começo da pandemia, o número mais alto de casos ocorreu no começo de setembro, quando a capital federal teve 1.347 casos num dia e a província, 5.920. A partir daí, o número começou a baixar. Porém, nas províncias, ao mesmo tempo, a curva começou a ascender.

No dia 21 de outubro, a Argentina bateu seu recorde nacional, com 18.326 contágios.

Até esta quinta-feira (5), o país tinha 1.205.928 contágios e 32.520 mortos. Nos últimos sete dias, a média de casos diários está em torno dos 10 mil, o que tranquilizou um pouco as autoridades.

"Não podemos baixar a guarda, porque estamos de olho no que está acontecendo na Europa", disse o ministro Ginés González García.

Para o infectologista Jorge Aliaga, da Universidade de Buenos Aires, ainda é cedo para apontar que houve um pico e este já foi superado. "Nós precisamos ter de 14 a 21 dias de redução sustentada, estamos chegando lá, mas ainda é preciso observar essa flutuação mais um pouco."

As aberturas vão seguir um cronograma rápido, pelos planos das autoridades. Em Buenos Aires, onde há diminuição mais clara dos casos, já estão autorizados o comércio de rua (com poucos clientes por vez) e os shoppings (com 25% da capacidade). Também os restaurantes e bares (com 25% dentro), mais terraços e varandas.

Casas de shows, cinemas e teatros continuam fechados. As academias de ginástica abriram, com hora marcada, enquanto a atividade industrial foi retomada. As autoridades agora recomendam que as pessoas "evitem" reunir-se com muita gente para celebrações. Quando o fizerem, que prefiram lugares ao ar livre.

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