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Eleições EUA 2020

Derrota de Trump abala populismo, mas é cedo para falar em fim da onda

Líderes de Bolsonaro a Orbán são próximos do americano, mas respiram por conta própria

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São Paulo

O fracasso de Donald Trump em buscar a reeleição abre um rombo no casco do populismo internacional, do qual o americano era o mais vistoso exemplo e farol. Isso pode indicar uma tendência de refluxo do tsunami que atingiu diversos países neste século, mas é precipitado falar em um movimento inequívoco.

Antes de tudo, há as particularidades a notar em cada local em que o populismo avançou e gradações diversas de associação com Trump.

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, à dir., e o dos EUA, Donald Trump, durante reunião bilateral em Osaka, no Japão
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, à dir., e o dos EUA, Donald Trump, durante reunião bilateral em Osaka, no Japão - Kevin Lamarque - 28.jun.19/Reuters

Obviamente, é correto falar em uma onda mundial com características comuns, que se apropriou do fracasso redistributivo da globalização e da difusão de agendas no pós-Guerra Fria.

Mas cada país é único. Por mais que a família Bolsonaro pratique a genuflexão pessoal e diplomática em relação a Trump, o brasileiro não chegou ao poder porque tem o americano como ídolo.

Isso pode ser válido para a bolha virtual do bolsonarismo, de resto um fenômeno isolado, mas a realidade é mais complexa.

O Brasil de 2018 tinha na mesa os reflexos da indignação antipolítica estimulada por junho de 2013 e pela ascensão da Lava Jato, para começar. A derrota de Trump é péssima para Bolsonaro, mas seus problemas são bem maiores hoje.

A vaga mundial talvez tenha atingido seu limite justamente com a chegada de Trump ao poder, em 2017. Bolsonaro, nesse sentido, seria mais um abalo secundário do que tributário do caudaloso rio do populismo.

O mesmo não pode ser dito de outros líderes, estabelecidos antes de o republicano chocar o mundo no pleito de 2016. É o caso de Recep Tayyip Erdogan, dando as cartas na Turquia desde 2003, ou de Binyamin Netanyahu, que chegou pela segunda vez ao cargo de primeiro-ministro de Israel em 2009 e de lá não saiu.

Com efeito, o turco rompeu com Trump depois de o americano se negar a extraditar o acusado de planejar um golpe de Estado contra si, um clérigo que mora nos EUA. Erdogan caminha uma linha própria, assim como outro líder que inspira parte dos populistas, mas não pode ser qualificado como um deles, o russo Vladimir Putin.

No Kremlin desde 1999, Putin é um homem forte típico da cultura de seu país, que manipula as estruturas de poder sem aderir o tempo todo ao ideário do populismo ocidental.

Um exemplo disso é sua defesa, cínica para os críticos, das instituições multilaterais tão espezinhadas por Trump —ao mesmo tempo, o americano não se livra da acusação de que foi ajudado a chegar ao poder pelo russo no pleito de 2016.

Assim como o chefe da ditadura comunista chinesa, Xi Jinping, Putin é um defensor de organismos como a ONU, o que geraria um nó na cabeça de um observador da década de 1980.

Já Netanyahu alinhou-se totalmente a Trump e se beneficia pela total reversão da política norte-americana no Oriente Médio aos princípios esposados por Tel Aviv. Tudo para enfrentar o Irã, mas essa é outra história, e sob Biden talvez sua posição não seja tão confortável.

Mesmo líderes mais alinhados com a tentativa de criar uma “Internacional Trumpista”, como gostaria a ala ideológica liderada pelos filhos de Bolsonaro e seu Itamaraty, também respiram por conta própria.

Já o movimento que buscava organizar a turma perde muito —de resto, já havia visto seu idealizador, o marqueteiro Steve Bannon, ser isolado pelo ex-chefe Trump e acabar preso.

O ex-ministro italiano Matteo Salvini perdeu poder, é fato, mas a direita populista segue no comando do país –como, de resto, já esteve nas encarnações do Trump de sua época, Silvio Berlusconi.

O húngaro Viktor Orbán, por sua vez, impressionou seus adversários ao devolver os poderes quase absolutos que o Parlamento local lhe dera para o combate à Covid-19.

A pandemia, por sinal, desafia a noção de que todo populista é um negacionista tosco.

O instituto liderado pelo ex-premiê britânico Tony Blair tem um projeto interessante chamado Populismo no Poder.

Em setembro, dos 19 líderes mundiais identificados pelo projeto como populistas, 12 haviam assumido respostas consideradas sérias à ameaça do novo coronavírus.

Desses 12, 5 haviam tomado medidas iliberais, como as ameaças de morte a quem espalhar o vírus feitas pelo filipino Rodrigo Duterte. Apenas 5, Bolsonaro e Trump inclusos, haviam optado por negar ou minimizar a crise.

A metodologia do instituto de Blair é arbitrária em seus critérios, como o de excluir de sua análise líderes de países que não considera democracias, como a Rússia de Putin, e de descartar o premiê britânico Boris Johnson como um populista clássico.

Mas o projeto fornece uma curva que mostra a prevalência do populismo desde 1990. Estamos num pico: 19 líderes mundiais no grupo, ante 4 há 30 anos.

Apenas em 2013, com 20 populistas no poder, havia mais –mas ali não eram contados nem Trump nem o indiano Narendra Modi, que acrescentam peso qualitativo brutal à avaliação.

O premiê da Índia é um caso interessante, por ter se aproximado de Trump como forma de adensar sua posição na disputa política que trava com a vizinha China pela hegemonia asiática.

Nada indica que o futuro presidente Biden irá mudar a posição dura em relação a Pequim, e o pragmatismo tenderá a manter o nacionalista hindu Modi ao lado de Washington sob nova direção.

Na Europa, onde diversos líderes demonstraram em algum momento entusiasmo com o trumpismo, a derrota do líder apenas ratifica a perda momentânea de gás deste campo.

Que não pode ser dada como universal, aliás.

A francesa Marine Le Pen, por exemplo, está muito próxima do presidente centrista Emmanuel Macron em pesquisas para o pleito de 2022.

Não é por acaso o endurecimento de Macron à direita após os atentados de jihadistas em seu país, no fim do mês passado. Seu governo é mal avaliado no geral, e ninguém o vê necessariamente como favorecido pela retirada de cena de Trump.

Há também a natureza pendular da política. Os eurocéticos britânicos que lograram tirar o Reino Unido da União Europeia em 2016, por exemplo, haviam sido dados como derrotados em um plebiscito em 1975.

Em 2004, com o ícone conservador “A Paixão de Cristo” de Mel Gibson estourando nos cinemas, George W. Bush foi reeleito de forma consagradora.

Até Bento 16, um conservador ainda mais duro do que o popular antecessor, João Paulo 2º, entraria no espírito do tempo ao ser ungido papa no ano seguinte.

Tudo viria a mudar rapidamente logo depois, em especial nos EUA, que elegeram personagens tão díspares quanto Obama e Trump em sucessão.

Uma questão em aberto é sobre o quão sequestrado pela agenda Trump foi o Partido Republicano. Tudo indica que as alas mais institucionais da sigla, como as ligadas à família Bush, definharam.

Mas o futuro ex-presidente ainda teria poder? Historicamente, não, pois ex é ex nos EUA.

E Trump tem alguns carregadores de estandarte prontos para assumir seu papel, como o secretário de Estado Mike Pompeo ou a ex-embaixadora na ONU Nikki Haley.

A provável resistência do ora presidente em deixar o palco, contudo, pode mudar o jogo. Sua figura catalisou a direita raiz americana que havia se insinuado no fim dos anos 2000 com o movimento Tea Party e a ampliou.

Por temperamento público e interesses insondáveis, parece difícil que ele vá largar os holofotes, e isso poderá servir de alento aos populistas que pregaram sua imagem à dele de forma mais aberta, como Bolsonaro.

Mas isso talvez não seja necessário. Como o ressurgimento de variantes fascistas entre os populistas prova, não há movimento político que possa ser dado como morto.

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