Descrição de chapéu The New York Times

'Estrada dos ossos' na Rússia esconde relíquias de sofrimento e desespero do gulag de Stálin

Ruínas ainda são visíveis onde dezenas de milhares morreram em campos soviéticos de trabalho forçado

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Andrew Higgins
Estrada de Kolimá | The New York Times

Os prisioneiros, abrindo caminho por pântanos infestados de insetos no verão e campos gelados no inverno, trouxeram a estrada, e depois a estrada trouxe ainda mais prisioneiros, levando uma torrente de trabalho escravo às minas de ouro e campos de prisioneiros de Kolimá, o posto avançado mais gélido e mortal do [sistema de campos de concentração] gulag de Josef Stálin [1878-1953].

Seu percurso ficou conhecido como a "estrada dos ossos", uma trilha de cascalho, lama e, na maior parte do ano, gelo que se estende por 2.000 quilômetros a oeste da cidade portuária russa de Magadan, no Oceano Pacífico, até Iakutsk, no interior, capital da região de Iakutia, na Sibéria oriental.

Serpenteando pela natureza intocada do Extremo Oriente russo, ela percorre paisagens de beleza dura e impactante, salpicadas de túmulos congelados sem identificação e vestígios dos campos de trabalho que desaparecem rapidamente.

Caminhão solitário atravessa a Rodovia Kolimá, conhecida como a 'estrada dos ossos', no Extremo Oriente da Rússia
Caminhão solitário atravessa a Rodovia Kolimá, conhecida como a 'estrada dos ossos', no Extremo Oriente da Rússia - Emile Ducke - 23.nov.19/The New York Times

Havia pouco tráfego quando o fotógrafo Emile Ducke e eu dirigimos no último inverno pelo que é hoje a Rodovia Kolimá, R504, uma versão atual da estrada construída pelos prisioneiros. Mas alguns caminhões de longa distância e carros ainda rodavam pela paisagem árida, indiferentes aos vestígios da miséria passada enterrados na neve —postes de madeira com arame farpado enferrujado, poços de minas abandonadas e os tijolos quebrados de antigas celas de isolamento.

Mais de 1 milhão de prisioneiros percorreram essa estrada, tanto condenados comuns quanto por crimes políticos. Entre eles estiveram algumas das melhores mentes da Rússia —vítimas do Grande Terror de Stálin, como o cientista de foguetes Sergei Korolev, que sobreviveu à provação e em 1961 ajudou a colocar o primeiro homem no espaço.

Ou o poeta Varlam Chalámov, que depois de 15 anos nos campos de Kolimá concluiu: "Há cachorros e ursos que agem de modo mais inteligente e moral que seres humanos". Suas experiências, registradas no livro "Contos de Kolimá", o convenceram de que "um homem se torna um animal em três semanas, com trabalho pesado, frio, fome e espancamentos".

Mas para muitos russos, incluindo alguns ex-prisioneiros, os horrores dos campos de Stálin estão se dissipando, toldados pela névoa rosada das memórias da juventude e da posição da Rússia como superpotência temida antes do colapso da União Soviética.

Antonina Novosad, 93, que foi presa quando adolescente no oeste da Ucrânia e condenada a dez anos em Kolimá por acusações políticas fraudulentas, trabalhou em uma mina de estanho perto da "estrada dos ossos".

Ela lembrou vividamente que uma colega prisioneira foi morta a tiros por um guarda por sair para colher frutas silvestres pouco além do arame farpado. Os prisioneiros a enterraram, disse Novosad, mas o cadáver foi arrastado por um urso. "Era assim que trabalhávamos e vivíamos. Deus me livre. Um campo é um campo."

Mas ela não tem mágoa de Stálin e lembra como os prisioneiros choraram quando, reunidos do lado de fora em março de 1953 para ouvir um anúncio especial, souberam que o tirano havia morrido. "Stálin era Deus", afirmou. "Como dizer isso? Stálin não teve culpa nenhuma. Foi o partido, toda aquela gente. Stálin só assinou."

Um grande fator que prejudica a preservação de mais que alguns vestígios de memória é o constante desaparecimento de provas físicas dos campos de Kolimá, disse o historiador Rostislav Kuntsevich, curador de uma exposição sobre os campos no Museu Regional de Magadan. "A natureza faz seu trabalho, e em breve não restará nada", disse ele.

Quando a neve derrete ou o trabalho de mineração revolve a terra congelada, o passado enterrado às vezes ressurge na superfície ao longo da estrada.

Sob o presidente Vladimir Putin, as memórias das perseguições da era stalinista não foram apagadas, como deixa claro um grande Museu da História do Gulag, financiado pelo governo, que foi inaugurado em Moscou em 2018. Mas elas foram frequentemente abafadas por comemorações de memórias rivais, notadamente a vitória da Rússia sob a liderança de Stálin contra Adolf Hitler na Segunda Guerra Mundial.

O júbilo por aquela vitória, santificada como um marco do orgulho nacional, obscureceu os horrores do gulag e projetou a popularidade de Stálin a seu nível mais alto em décadas.

No outro extremo do país, em Karelia, junto à Finlândia, o historiador amador Yuri Dmitriev contestou essa narrativa escavando os túmulos de prisioneiros que foram mortos a tiros pela polícia secreta de Stálin —e não, como alegam historiadores "patriotas", por soldados finlandeses aliados à Alemanha nazista. Em setembro, ele foi condenado a 13 anos de prisão com base na evidência tênue e, segundo seus apoiadores, fabricada, de agressão sexual a sua filha adotiva.

Uma pesquisa de opinião publicada em março indicou que 76% dos russos têm uma visão favorável da União Soviética, com Stálin superando todos os outros líderes soviéticos na estima pública.

Perturbado por outra pesquisa, que concluiu que quase a metade dos jovens russos nunca ouviu falar na repressão da era stalinista, Yuri Dud, um blogueiro de Moscou que tem um grande número de seguidores jovens, viajou por toda a "estrada dos ossos" em 2018 para explorar o que chamou de "Pátria do Nosso Medo".

Depois do lançamento online de um vídeo que Dud fez sobre a experiência, seu companheiro de viagem, Kuntsevich, o historiador de Kolimá, enfrentou uma chuva de agressões e ameaças físicas de stalinistas empedernidos e outros que se ressentem de ver o passado revirado.

Kuntsevich disse que inicialmente tentou discutir com os que o atacavam, citando estatísticas sobre execuções em massa e mais de 100 mil mortes nos campos de Kolimá por fome e doenças. Mas ele rapidamente desistiu.

"É melhor não discutir com as pessoas sobre Stálin. Nada vai fazê-las mudar de ideia", disse ele em seu museu, perto de uma pequena estátua de Chalámov, o escritor cujos relatos da vida nos campos são rejeitados como ficção pelos fãs de Stálin.

Até algumas autoridades ficam chocadas com a reverência a um ditador assassino. Andrey Kolyadin, que como oficial do Kremlin foi enviado ao Extremo Oriente para servir como vice-governador da região que inclui Kolimá, lembrou que ficou horrorizado quando um morador ergueu uma estátua de Stálin em sua propriedade. Kolyadin ordenou que a polícia a removesse.

"Tudo aqui é construído sobre ossos", disse Kolyadin.

A cidade litorânea de Magadan, no início da "estrada dos ossos", relembra o antigo sofrimento com uma grande estátua de concreto chamada Máscara da Dor, erguida nos anos 1990 sob o presidente Boris Ieltsin. Mas ativistas pelos direitos humanos dizem que as autoridades e muitos moradores hoje querem mesmo é virar a página sobre o passado sombrio de Kolimá.

"Ninguém quer realmente reconhecer os antigos pecados", disse Sergei Raizman, representante local do grupo ativista Memorial.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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