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Nova alta de casos na Europa e nos EUA reflete efeitos das respostas ao coronavírus

Desde meados de setembro, europeus e americanos vivem um crescimento no número de novos casos

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São Paulo e Bauru

Enquanto o mundo ultrapassa a marca de 60,5 milhões de infecções pelo coronavírus, os comportamentos das curvas de novos casos nos Estados Unidos e na Europa refletem as diferenças na coordenação das respostas à pandemia que provocou mais de 1,4 milhão de mortes em todo o planeta.

Desde meados de setembro, europeus e americanos vivem um crescimento no número de novos casos. A partir de outubro, o aumento nas infecções tornou-se mais agudo e as duas curvas começaram a subir em uma posição quase vertical. Em novembro, porém, os efeitos da imposição de novas restrições nos países da Europa puxaram a curva para baixo, enquanto o índice dos EUA segue em crescimento acelerado.

A representação gráfica foi feita pela Folha com base no banco de dados da Universidade Johns Hopkins, referência em estatísticas para ajudar a entender as dimensões dos efeitos da pandemia de coronavírus no mundo. Foram considerados na amostra dados dos 50 estados americanos e de 44 países europeus.

"Na Europa, após um início catastrófico nos primeiros meses do ano, houve em muitos países um 'lockdown' rigoroso, e a transmissão da doença caiu abruptamente", analisa o médico infectologista Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp). "Assim, quando voltou a subir, também abruptamente, isso foi caracterizado como uma 'segunda onda'", diz, citando como positivas as medidas adotadas por países como Alemanha e França.

No final de outubro, a chanceler alemã, Angela Merkel, que vinha sendo elogiada internacionalmente por ter encarado a pandemia com seriedade e rigor científico, reconheceu que a evolução da Covid-19 em seu país se tornou "dramática" e implantou novas regras de isolamento nos 16 estados.

Nesta semana, as medidas foram prorrogadas até pelo menos 20 de dezembro, e Merkel admitiu que as restrições podem permanecer até janeiro. Nesta quinta, a Alemanha bateu o recorde de casos diários (32 mil) desde o início da pandemia, e o número de mortes (378) só fica atrás dos 510 óbitos registrados em 15 de abril. No total, o país tem 996 mil casos e 15 mil mortes por coronavírus.

Com dinâmica parecida, a França implantou "lockdown" entre março e maio. Em 30 de outubro, voltou a restringir as atividades até que, nesta semana, o presidente Emmanuel Macron adotou um tom otimista ao anunciar um plano de reabertura gradual que permitirá aos franceses viajarem normalmente nas festas de fim de ano.

Também nesta quinta, o primeiro-ministro Jean Castex reforçou a abordagem positiva dizendo que a pandemia está "enfraquecendo mais" na França do que no restante da Europa. O ministro da Saúde francês, Olivier Veran, foi um pouco mais cauteloso e fez questão de lembrar à população que a Covid-19 "ainda não ficou para trás".

Equipe médica atende paciente com Covid-19 em hospital nos subúrbios de Toulose, na França
Equipe médica atende paciente com Covid-19 em hospital nos subúrbios de Toulose, na França - Lionel Bonaventure - 16.nov.20/AFP

Atrás de EUA, Índia e Brasil, a França ocupa a quarta posição no ranking de nações com maior número de casos. Em 8 de novembro, o país chegou a registrar mais de 125 mil novas infecções, cifra que caiu para quase 16 mil nesta quinta-feira. Segundo Macron, as restrições serão suspensas no meio de dezembro se esse número cair para perto de 5.000.

Depois de quase zerar o número de óbitos diários em agosto, a França voltou a registrar mais de mil mortos por dia em pelo menos quatro ocasiões neste mês, relembrando o fantasma das mortes aos milhares no mês de abril. No acumulado, o país tem 2,2 milhões de casos e 50,7 mil mortes por Covid-19.

Com o maior número de mortos pela pandemia na Europa, o Reino Unido anunciou nesta quinta o novo plano de bloqueio nacional que deve entrar em vigor a partir de 2 de dezembro, quando acaba o prazo determinado pelas restrições anteriores.

As novas regras variam de acordo com critérios como a capacidade de atendimento dos serviços de saúde locais e a proporção de casos positivos entre os testados para coronavírus.

O território foi dividido em três níveis, com normas específicas para cada categoria, que incluem limite de pessoas em reuniões, horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais e diretrizes para viagens domésticas e internacionais.

Apesar de o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, prometer às crianças que o Papai Noel vai conseguir fazer seu trabalho neste Natal, os números do país ainda não assim tão animadores. A taxa de mortes (695) desta quinta se assemelha aos índices de maio, embora ainda esteja distante do recorde de 1.224 óbitos registrados em 21 de abril.

Além disso, há duas semanas, o Reino Unido confirmou 33,5 mil casos em um único dia, cifra que supera com folga qualquer outra registrada pelos britânicos desde o início da pandemia. No acumulado, o país soma mais de 1,5 milhão de casos e 57 mil mortes.

Fortaleza, da Unesp, chama a atenção para o fato de que, quando as infecções voltaram a crescer na Europa, dizia-se que havia aumento de casos, mas não de óbitos. "Dois meses depois, há recordes diários de mortes, mostrando que estas sobem semanas após o aumento de casos", afirma o infectologista, acrescentando que isso acontece porque as pessoas que morrem por Covid-19 costumam passar por longos períodos de internação.

Analisar os dados para definir erros e acertos dos países ainda é um desafio, explica Piotr Kramarz, cientista do Centro Europeu de Controle de Doenças (ECDC, na sigla em inglês).

"A maioria dos países implementou várias medidas ao mesmo tempo, tornando extremamente difícil determinar o efeito individual de qualquer abordagem", explica Kramarz. "Tentar atribuir as diferenças observadas na epidemiologia da Covid-19 às medidas de saúde pública executadas em um país é, portanto, extremamente difícil e não é algo que o ECDC tentou até agora."

Apesar dos sinais amarelos para a Europa, Deisy Ventura, coordenadora do doutorado em saúde global da Universidade de São Paulo (USP), considera positiva a percepção da maioria dos governos do continente sobre o momento e a forma de adotar novas restrições.

"Um bom exemplo das respostas europeias foi o anúncio simultâneo de medidas quarentenárias e medidas de proteção social que permitiram o cumprimento das primeiras, como a redução ou suspensão de tarifas essenciais como as de eletricidade e gás, além de oferecer ou ampliar diversas modalidades de benefícios sociais emergenciais", analisa a especialista.

Esse tipo de coordenação é diferente das medidas adotadas nos EUA, em que cada estado tem autonomia constitucional para definir suas próprias regras. De acordo com os dados analisados pela Folha, estados americanos que hoje apresentam alta de casos tiveram fases mais brandas nos meses iniciais da pandemia.

Essa constatação se verifica, por exemplo, na Dakota do Norte, em Wyoming, no Novo México, na Dakota do Sul e em Minnesota, os cinco estados com as maiores proporções de novos casos de Covid-19 na comparação com o tamanho de suas populações.

Um levantamento do jornal New York Times, feito a partir de dados da Universidade de Oxford, aponta ainda que estados que impuseram menos restrições nos últimos meses vivem agora os piores surtos de coronavírus. Além dos já mencionados, também entram nessa lista estados como Iowa, Nebraska e Wisconsin.

O NYT também aponta Iowa como o único estado cuja taxa de infecção considerada alta apresenta uma tendência de queda. Até a tarde desta quinta-feira, todos os outros 49 estados somam os altos índices de novos casos às tendências de agravamento.

Para os especialistas ouvidos pela Folha, a gravidade da pandemia nos EUA é resultado da soma de fatores sanitários, mas também políticos. Se a pandemia de Covid-19 teve peso significativo para a derrota do presidente dos EUA, Donald Trump, em sua corrida pela reeleição, o contrário também é verdadeiro: a postura do líder republicano teve efeito agravante no cenário da saúde pública.

Para Ventura, as eleições americanas foram "decisivas para o desastre da resposta [ao coronavírus] no plano federal". A especialista classifica como "crimes contra a saúde pública" ações como os ataques do presidente a instituições como o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e a sugestão, nociva e sem fundamentos, de que os americanos poderiam ingerir desinfetante para combater a Covid-19.

"Medidas de contenção de epidemias são sempre antipáticas e possuem elevado custo político, econômico e social. Elas também exigem estratégias de obtenção de consensos entre partidos políticos, instituições públicas e privadas e atores sociais. Como candidato à reeleição, Trump não quis pagar esse preço", afirma Ventura.

Em vez disso, segundo a especialista, o republicano recorreu à mesma estratégia de propaganda que o levou à Casa Branca em 2016: um misto de desinformação, extremismos, teorias da conspiração e negacionismo científico.

"Preocupa ainda o fato de que Trump tem dificultado o trabalho de uma equipe de transição para o futuro governo [do presidente eleito Joe] Biden, o que seria essencial para o enfrentamento da emergência epidemiológica", avalia Fortaleza.

O professor da Unesp traça ainda um paralelo com a situação da pandemia de coronavírus no Brasil. "O negacionismo do [presidente Jair] Bolsonaro e a apatia do Ministério da Saúde têm exigido que cada estado tome suas próprias medidas. Isso é claramente um enfraquecimento do pacto federativo, fazendo com que funcionemos como 'Estados Unidos do Brasil'", afirma.

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