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O pesadelo de Macondo ou a paz que não poderia ser

Atual governo colombiano surgiu como principal impedimento para a implementação do Acordo de Paz com as Farc

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Jerónimo Ríos

Cientista político e professor da Universidade Complutense de Madri. Pesquisador do pós-doutorado e principal pesquisador do projeto "Discurso e expectativa sobre a paz territorial na Colômbia". Doutor em ciências políticas pela Univ. Complutense de Madri.

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Este novembro marca quatro anos desde a assinatura do Acordo de Paz com as Farc-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército do Povo). No entanto, são quatro anos que, em termos da extensão da violência e do conflito armado interno, parecem, sem dúvida, muitos mais.

É evidente que a assinatura de um acordo de paz é sempre uma questão complexa, com muitas nuances, com inegáveis desconfianças e expectativas em jogo. Mais ainda se falamos do conflito armado mais longo da América Latina.

Assim, o que é verdadeiramente complexo é manter os compromissos, desenvolvendo as transformações que esses implicam e superando as condicionantes estruturais, político-institucionais e simbólicas que suportaram a violência por mais de cinco décadas.

Inevitavelmente, pode-se pensar que o Acordo de Paz assinado pelas Farc-EP, e que para grande parte da comunidade acadêmica é o mais completo dos últimos trinta anos, no papel, foi baseado em um mito que ultrapassou qualquer vislumbre da realidade futura. Ainda mais na terra de Macondo, como é a Colômbia.

Ou seja, mesmo que após a presidência de Juan Manuel Santos as melhores condições tivessem sido providenciadas para sua implementação, possivelmente estaríamos hoje falando de diferenças entre o que foi acordado, o que foi previsto e o que foi implementado.

Ou, como um bom amigo me disse há apenas algumas semanas, entre a paz que poderia ser, a paz que finalmente deveria ser e a paz que, infelizmente, está sendo.

Ex-combatentes das Farc fazem ato em Bogotá, a capital colombiana, a fim de mostrar os avanços dos projetos produtivos que decorreram do Acordo de Paz e para questionar a eficácia do mesmo
Ex-combatentes das Farc fazem ato em Bogotá, a capital colombiana, a fim de mostrar os avanços dos projetos produtivos que decorreram do Acordo de Paz e para questionar a eficácia do mesmo - Jhon Paz - 3.nov.2020/Xinhua

Como é de se esperar, não joga a nosso favor –e incluo todos nós que realmente ansiamos a superação da violência na Colômbia– que o primeiro grande sabotador do Acordo tenha sido o mesmo governo do inefável Iván Duque.

Um acordo de paz, como o ex-vice-presidente da Colômbia, Angelino Garzón, uma vez me confessou em uma conversa particular, "é um acordo entre perdedores".

Expressada em termos mais acadêmicos, é a solução negociada, baseada em intercâmbios cooperativos, resultado do fato de que as partes contrárias não foram capazes de responder unilateralmente a seus interesses no âmbito do conflito.

No caso da Colômbia, o Acordo integrou exigências históricas das Farc-EP, como a reforma rural; aspectos comuns a todos os acordos de paz, como a participação política ou a justiça transitória; e, da mesma forma, condições governamentais, como a entrega de armas ou a colaboração na mitigação do negócio das drogas e seu impacto sobre a violência.

Neste caso em particular, o atual governo colombiano surgiu como o principal impedimento para a desejada implementação do Acordo.

Em outras palavras, de acordo com todos os relatórios de monitoramento, incluindo os do Instituto Kroc da Universidade de Notre Dame, há elementos que mal começaram a ser desenvolvidos, como a reforma rural abrangente ou a mitigação do problema das drogas ilícitas, cujos níveis de cumprimento são inferiores a 5%.

Por outro lado, o mesmo Executivo fez todo o possível no Congresso para evitar a aprovação das 16 cadeiras que deveriam dar voz política aos territórios mais afetados pela violência, e até mesmo o próprio presidente invocou todas as objeções possíveis para impedir que a Jurisdição Especial para a Paz, prevista no Acordo de Paz, se materializasse. Ele não teve sucesso, mas em troca conseguiu desfazê-lo em mais de 30%.

Embora tudo isso esteja acontecendo, as condições que têm suportado a violência durante décadas permanecem inalteradas em um dos países mais desiguais do mundo em termos sociais (0,54 Gini Coeficiente) e territoriais (0,85 Gini Coeficiente de acordo com a distribuição da propriedade da terra).

Mesmo assim, as plantações de coca continuam sendo cultivadas em uma área que, segundo as Nações Unidas, excede 150 mil hectares.

E em um Estado, tradicionalmente, com mais território que soberania, a geografia da violência anterior ao diálogo de paz iniciado em Havana, em 2012, é praticamente a mesma.

Ou seja, a violência periférica, em departamentos que são, em sua maioria, regiões de cultivo de coca, fronteiras, e que têm vivido por trás dos interesses de um centralismo a serviço das elites políticas e econômicas do país.

Com exceção do departamento de Antioquia, que tem várias particularidades próprias, os departamentos mais violentos da Colômbia são exatamente os mesmos de uma década atrás: Chocó, Cauca e Nariño na costa do Pacífico, Caquetá e Putumayo no sul, e Arauca e Caquetá no nordeste.

Não é por acaso que esses mesmos departamentos, com exceção do de Arauca, são os que concentram 80% da área de cultivo de coca e onde, na maioria das vezes, se condensa uma porcentagem ainda maior dos chamados dissidentes das Farc-EP, enquanto a maioria de seus membros não são ex-combatentes das Farc-EP .

Esses dissidentes são grupos criminosos que se contam por dezenas e com mais de 2.000 membros no total. Eles fragmentaram e desideologizaram o sentido do conflito armado sob uma lógica ainda mais complexa, onde a velha interpretação simplista da violência se torna completamente inútil.

Como se isso não fosse suficiente, o Clã do Golfo também deve ser adicionado, em parte, como herdeiro de um paramilitarismo desmobilizado há 15 anos e que tem mais de 1.800 integrantes. É verdade que é muito atomizado e sujeito às dinâmicas locais de violência e criminalidade, mas está especialmente enraizado na região de Magdalena Medio, Antioquia ou no Caribe.

Também estaria o ELN (Exército de Libertação Nacional), um grupo guerrilheiro que vive fraturado entre um antigo comando político em Cuba que ainda vê a relevância de uma solução negociada para a violência, e um novo comando, mais jovem, beligerante e também desideologizado, que aproveitou boa parte do vácuo deixado pelas Farc-EP –que nunca foi ocupado pela Força Pública Colombiana– para aumentar sua presença territorial, seu número de tropas e seus recursos provenientes de financiamentos ilegais.

Dadas as circunstâncias, o resultado é claro. A Colômbia que podíamos sonhar há quatro anos é agora uma preocupante distopia na qual a cada dia que passa o desejo de paz se afasta um pouco mais. Desde que o Acordo foi assinado, mais de 230 ex-guerrilheiros das Farc-EP e 700 líderes sociais foram assassinados. Só em 2020, haverá um total de 70 massacres e 278 pessoas mortas.

Em essência, a responsabilidade é de um governo que sempre se mostrou confortável com o discurso da guerra, da militarização e da lógica amigo/inimigo, e em que o fluxo eleitoral e político permite a compreensão de figuras tão terríveis para o país como a de Álvaro Uribe.

No entanto, os tempos mudaram. As exigências e necessidades da sociedade colombiana vão além de uma mesquinhez que, esperemos, terminará em agosto de 2022, com o atual governo fora do poder.

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que difunde diferentes visões sobre a América Latina.

Tradução de Maria Isabel Santos Lima

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