Polarização no Congresso e esquerda democrata devem dificultar agenda ampla de Biden

Analistas dizem que presidente eleito vai precisar abusar do perfil conciliador para tentar avançar com pautas moderadas

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Washington

A promessa de uma campanha que unificaria o país virou também compromisso de presidente eleito, mas a polarização do Congresso e a esquerda do Partido Democrata podem dificultar o caminho de Joe Biden para colocar em marcha um governo de agenda ampla e que contemple todos os americanos.

O partido de Biden manteve a maioria na Câmara, apesar de ter encolhido em relação ao tamanho atual da bancada.

Mas o comando do Senado, peça fundamental para definir a amplitude do poder da Casa Branca, só será conhecido em janeiro, após o segundo turno na Geórgia, estado onde duas cadeiras estão em jogo.

Mesmo que os democratas levem as duas vagas no Senado —cenário menos provável, segundo analistas—, ainda estarão longe da ampla maioria que esperavam conquistar na Casa que, até agora, vê o plenário para o próximo ano bastante dividido. O partido de Biden tem 48 dos 100 senadores, ante 50 republicanos, e o voto de minerva, caso haja empate, será da vice-presidente eleita, Kamala Harris.

Desde que foi declarado vitorioso, na semana passada, Biden tem recebido sinais assertivos das duas pontas da régua política, cristalizando a ideia de que seu grande desafio será navegar entre aliados e adversários que, muitas vezes, não parecem dispostos a negociar.

Enquanto a cúpula republicana mostrou que não reconhece Biden como presidente legítimo, embarcando na tese fantasiosa de Donald Trump de que a eleição foi fraudada, nomes da ala mais à esquerda democrata, como a senadora Elizabeth Warren, já pressionam publicamente por medidas que, na sua avaliação, devem ser tomadas logo no primeiro dia de governo, principalmente em relação à saúde e ao meio ambiente.

Especialistas em política americana dizem que Biden não terá vida fácil no início de mandato e que precisará abusar de seu perfil conciliador para tentar avançar com pautas moderadas e consideradas quase unânimes, como as de combate à pandemia de coronavírus, que já matou mais de 240 mil pessoas nos EUA.

Professor da Universidade Columbia, Lincoln Mitchell afirma que Biden não vai ter facilidade em nenhum tipo de agenda legislativa forte, não deve fazer grandes mudanças estruturais no primeiro ano de governo e terá que negociar inclusive com seu próprio partido, independentemente do resultado da disputa no Senado.

"Se os republicanos ganharem uma ou as duas cadeiras na Geórgia, o que tem boa chance de acontecer, vão poder bloquear as indicações para o primeiro escalão do governo. Esse é o nível de obstrução que podemos esperar e, se isso acontecer, a Presidência de Biden ficará bem prejudicada."

Nos EUA, as nomeações para o secretariado precisam ser aprovadas pelo Senado.

Caso os democratas consigam as duas cadeiras da Geórgia e contem com o voto de Kamala para eventuais desempates, continua o professor, Biden ainda terá que barganhar com nomes mais moderados de seu partido. "Não importa só o que pensam Bernie Sanders ou Elizabeth Warren [senadores ligados à ala mais à esquerda democrata]. Biden vai precisar do apoio de todos os senadores democratas."

Há quem acredite que parte dos republicanos ficará no negacionismo sobre a vitória de Biden somente até 14 de dezembro, quando o Colégio Eleitoral deve oficializar o resultado projetado pela imprensa.

Nos últimos dias, alguns senadores do partido de Trump já fizeram acenos ao democrata, mesmo que de forma indireta, mas a cúpula republicana ainda trata a eleição do democrata como ilegítima.

E é justamente sobre esses republicanos mais moderados que Biden precisa atuar, na avaliação de Mitchell, afastando rótulos e iniciando o governo com pautas mais unânimes.

"Se a Câmara [de maioria democrata] aprovar o aumento do salário mínimo, por exemplo, os senadores republicanos vão ficar em uma posição muito ruim de não apoiar uma medida que vai ajudar grande parte dos americanos em tempos de crise. Em vez de começar com medidas sobre mudanças climáticas, comece por saúde, algo que leve dinheiro às pessoas que estão sofrendo com a Covid-19", completa o professor.

Já Mark Rom, professor na Universidade Georgetown, avalia que Biden vive um impasse. Ele afirma não acreditar que os republicanos vão colaborar nem mesmo para a aprovação de medidas consideradas mais unânimes ou de urgência, como em saúde e economia.

Ele concorda ser "altamente improvável" que os democratas levem as duas cadeiras na Geórgia, o que permitiria a Biden cumprir uma agenda mais ambiciosa. Portanto, explica, é preciso se voltar logo à realidade de que os republicanos "vão dizer não às principais iniciativas do novo governo".

"Os republicanos no Senado não vão colaborar, e Biden estará se enganando se achar que sim. O melhor exemplo histórico é Barack Obama, que negociou por meses com os republicanos na Câmara e no Senado a respeito do Obamacare [programa de ampliação ao acesso ao sistema de saúde]. Sua administração fez concessões substanciais, e o que eles receberam em troca? Todos os senadores e deputados republicanos votaram contra a legislação final. Todos."

Nos últimos dias, o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, fez coro à tese mentirosa de Trump de que é preciso contar "todos os votos legais" antes de declarar o ganhador da eleição —Biden chegou a 306 votos no Colégio Eleitoral, sendo que são necessários 270 para vencer; enquanto Trump tem 232.

O roteiro não é novo. Quando Obama foi eleito, em 2008, McConnell disse que atuaria para fazer do primeiro presidente negro da história dos EUA um líder de apenas um mandato.

Não conseguiu, mas dificultou —e muito— o governo, principalmente a partir de 2012, bloqueando todas as medidas importantes que chegavam da Casa Branca.

Durante o governo Obama, a esquerda democrata —menos influente na sigla do que agora— não pressionou o presidente por transformações mais estruturais e considera hoje que esse foi um erro estratégico que não deve se repetir sob Biden.

Bernie Sanders, Elizabeth Warren e Alexandria Ocasio-Cortez são considerados políticos pragmáticos, que não comprarão todas as brigas, mas não deixarão de pressionar sobre clima e saúde.

O professor Rom, de Georgetown, diz que a pressão pode ter "alguns sucessos".

"Mas é improvável que as posições de Biden se movam muito mais à esquerda do que as já declaradas."

O presidente eleito já sinalizou que vai usar ordens executivas —uma prerrogativa do cargo, semelhante à medida provisória no Brasil— para cancelar decisões de Trump logo após sua posse, em 20 de janeiro.

Estão entre as prioridades o retorno dos EUA ao Acordo de Paris, o cancelamento da proibição de vistos para moradores de países de maioria muçulmana e o estabelecimento de uma proteção legal que impeça a deportação dos "dreamers" —imigrantes sem documento que chegaram ainda criança ao país.

Mas a esquerda democrata quer mais. Warren cita, entre outras medidas, o cancelamento de bilhões de dólares em dívidas estudantis, a redução do preço de medicamentos, o aumento do salário mínimo e a declaração da crise climática como emergência nacional.

Aumento de Covid-19

Biden diz que sua prioridade no início de governo será o combate à Covid-19, diante de números que voltaram a bater recordes nos últimos dias no país.

Com mais de 10,7 milhões de casos e quase 245 mil mortes, cerca de 20% do total no mundo todo, os EUA registraram mais de 150 mil diagnósticos em um único dia na quinta (12), o maior índice desde o início da pandemia, além de mais de 66 mil hospitalizações e números de mortes no mais alto patamar desde maio.

Com a piora no quadro, diversos prefeitos e governadores já deram novas ordens de isolamento, apesar de Trump seguir dizendo que não vai declarar novo 'lockdown' nos EUA.

Em Chicago, por exemplo, os moradores só podem sair de casa para trabalhar, ir à escola, ou para atividades essenciais, como comprar remédios e alimentos.

Em Nova York, por sua vez, o limite para lugares fechados voltou a ser de grupos de dez pessoas, e estados como Ohio, Utah, Connecticut e Colorado também impuseram novas restrições nesse sentido.

A pandemia foi o tema central da disputa à Casa Branca e, logo depois de ter sido declarado eleito, Biden anunciou uma força-tarefa com especialistas para o combate à pandemia, apesar de a gestão Trump estar dificultando a transição de poder.

O democrata fez um apelo para o uso de máscaras pelos americanos como forma de prevenção da doença até uma vacina ser aprovada, e auxiliares já discutem a possibilidade de não haver uma cerimônia de posse nos moldes tradicionais caso a situação da pandemia siga piorando.

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