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Polônia vive 'guerra fria' entre mulheres progressistas e homens de extrema direita, diz sociólogo

Para Rafal Pankowski, radicalização de governo e Igreja fez crescer insatisfação

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Bruxelas

Conflitos entre progressistas e grupos de extrema direita trouxeram para as ruas uma “guerra fria” que se aprofunda há duas décadas na Polônia, diz o sociólogo e cientista político Rafal Pankowski, 44, presidente da associação antirracista Nunca Mais.

Mais que a tradicional divisão entre metrópoles progressistas e um interior rural conservador, o país passa por uma polarização que tem um forte componente de gênero, principalmente entre os jovens, diz ele.

Os homens formam o exército dos grupos de extrema direita, que anunciaram recentemente a criação de milícias e colocaram pela primeira vez o partido radical Confederação no Parlamento.

As jovens, por outro lado, são o motor dos movimentos progressistas, que nos últimos dias canalizaram a frustração ampla contra a radicalização do governo e da Igreja Católica em temas que vão muito além da legislação antiaborto, segundo o sociólogo, um dos principais estudiosos sobre a extrema direita no país.

De Varsóvia, Pankowski falou com a Folha por Skype sobre o que os protestos feministas têm de novo, que resultado podem obter e o que se espera da atual polarização política na Polônia.

Em Varsóvia, manifestantes fazem performance durante protesto contra restrições ao aborto na Polônia
Em Varsóvia, manifestantes fazem performance durante protesto contra restrições ao aborto na Polônia - Slawomir Kaminski - 10.nov.20/Agencja Gazeta via Reuters

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Os extremistas que atacaram feministas são movimentos organizados ou grupos espontâneos? Houve as duas coisas. Grupos organizados fizeram um número preocupante de ataques, inclusive contra mulheres, o que não é comum na Polônia, não apenas em Varsóvia, mas em várias cidades. E houve grupos que se juntaram especificamente contra as manifestantes.

Devido ao ataque às igrejas? O ataque às igrejas foi muito mais simbólico que concreto, mas a defesa da Igreja foi um pretexto útil para mobilizar mais gente. Robert Bakiewicz, presidente da Associação da Marcha da Independência, conseguiu se impor como o rosto desse suposto movimento de defesa das igrejas. Já faz anos que seu grupo age contra movimentos progressivas, e agora eles anunciaram a formação de uma unidade paramilitar, chamada Guarda Nacional. A ONR, outro grupo, também anunciou suas Brigadas Nacionais.

São milícias armadas? Essa é a ideia. Não creio que sejam armas pesadas, até agora não houve incidentes, mas alguns desses grupos têm experiência em treinamento paramilitar. Outra corrente menos organizada mas muito importante são as torcidas de futebol. Os hooligans são os mais violentos e foram os que atacaram jornalistas, por exemplo, nos últimos dias.

Os hooligans atacam só pela violência ou há motivos ideológicos? Estão contentes de se engajarem em atos violentos, mas há também motivação ideológica. O ambiente das torcidas é fortemente infiltrado pela extrema direita nacionalista. A marcha de 11 de novembro começou como algo pequeno há dez anos e se tornou algo imenso no ano passado, com mais de 100 mil pessoas de todos os lugares da Polônia. Se você olhar, a grande maioria é formada por torcedores.

Existe um perfil claro dos hooligans? São homens jovens das classes trabalhadoras? O perfil é um pouco mais complexo em relação à classe social, mas, em termos gerais, é isso. Além disso, o partido governante, Lei e Justiça [PiS], é muito de direita.

Homem de óculos, camisa branca e paletó preto repouca o queixo na mão direita
Rafal Pankowski, sociólogo e cientista político polonês - RPO/Divulgação

Quanto de direita? Se 1 for o mais progressista e 10 o mais reacionário em termos de costumes, onde está o PiS? É bastante subjetivo, mas eu diria 8. Começou como um partido conservador igual aos outros, mas se moveu para a direita nos últimos anos, radicalizou-se, em parte por decisões pessoais de seu líder [Jaroslaw Kaczynski] e porque quase todos os mais liberais deixaram o partido.

Mas há partidos ainda mais de direita, como o Confederação. Sim, e eles chegaram ao Parlamento com o apoio de homens jovens e uma enorme parcela dos hooligans. Há na Polônia hoje uma dimensão de gênero que não existia anos atrás, principalmente entre os jovens. Os homens são mais de direita, ou até de extrema direita, enquanto as mulheres jovens, como se vê pelos protestos, se não são de esquerda são muito mais progressistas.

Qual a força das mulheres? Os protestos recentes são muito especiais não só pela escala, mas porque aconteceram em centenas de cidades pequenas que nunca antes tiveram atividade política. O aborto foi a razão inicial, mas há uma insatisfação acumulada contra a tendência autoritária dos últimos anos, principalmente depois da campanha extremamente homofóbica na última eleição presidencial, em julho.

O presidente Andrzej Duda fez uma campanha homofóbica e foi reeleito justamente devido à força nas cidades pequenas. Por que esse descontentamento não aflorou na eleição? É de fato um paradoxo. Mas acho que em parte há relação com a pandemia; antes da eleição, o governo tinha mais crédito. Agora ficou claro que a Covid-19 não está banida, e muitos não entendem por que o governo gastou tanta energia contra os gays em vez de preparar o sistema de saúde para a segunda onda. Há muita ansiedade sobre o futuro, não necessariamente direcionada a saúde, mas à economia, que é um contexto importante dos protestos. A combinação de vários fatores criou essa massa crítica espetacular.

Há conciliação viável entre as forças progressistas e as de direita? Não há nem espaço nem apetite para diálogo, a polarização neste momento é muito intensa, assim como a divisão da sociedade.

Se os manifestantes dizem que não vão parar enquanto o governo não devolver direitos às minorias, a extrema direita está criando milícias e não há chance de conciliação, os poloneses caminham para um grande conflito? Sim, é de esperar. O conflito já está muito intenso em palavras e atitudes, e a hostilidade já virou violência em alguns momentos. Não houve mortes, mas há medo de que a agressão escale. São preocupações legítimas, e não espero solução rápida, porque há raízes profundas em tantos níveis. Há uma “guerra fria” dentro da sociedade polonesa que vai durar muitos anos.

Que resultado espera dos protestos progressistas? No futuro próximo, não devemos ver grandes mudanças. Pode ter um impacto significativo no longo prazo, porque esta é a socialização política dos mais jovens, uma experiência importante, que pode contribuir para mudanças sociais e culturais.

Os manifestantes adotaram uma linguagem agressiva, com slogans como “foda-se”. Há um objetivo político? A linguagem é de fato forte, e isso também é novo. Em parte é uma forma de manter longe os mais velhos. Eu compararia esses protestos a Maio de 68 na França. Este é o nosso Maio de 68, um novo estilo desconhecido na Polônia. Outra novidade é a hostilidade ou a rejeição aberta contra a Igreja.

Parte dos progressistas é também católica. A Igreja Católica na Polônia é monoliticamente pró-direita? Ou há divisões? Nos anos 1990 havia vozes mais progressistas e mais conservadoras, mas nas últimas duas décadas a Igreja adotou uma linha mais e mais dura, quase se confundindo com a mensagem da extrema-direita. A hostilidade das últimas semanas contra a Igreja não é gratuita, tem a ver com a radicalização do clero católico. Se por um lado eles são cada vez mais poderosos na política, por outro estão perdendo boa parte do respeito que tinham na sociedade.

É possível estimar o alcance da extrema direita na sociedade polonesa? Podemos fazer uma aproximação pelos resultados eleitorais. O Confederação teve pouco mais de 6% dos votos na eleição parlamentar do ano passado, quando chegaram ao Legislativo pela primeira vez, e neste ano seu líder e candidato, Krzysztof Bosak, teve 7% dos votos. Essa é a fatia de uma extrema direita abertamente racista e não democrática. Mas a maioria desse apoio vem de homens jovens, e entre eles a fatia chega a 30%.

A crise econômica pós-pandemia pode ampliar o alcance da extrema direita? Pode, mas não há nada de automático nisso. A extrema direita vêm crescendo sem ligação com a economia. A Polônia foi, por exemplo, o único país europeu que não entrou em recessão depois da crise global de 2008, mas a extrema direita cresceu mesmo assim, e continuou se ampliando nesta década, principalmente depois de 2015.

Por causa dos refugiados? Sim, mas eles [a extrema direita] criam problemas artificiais, que é exatamente o caso dos refugiados. É um número muito pequeno na Polônia, mas a extrema direita é hábil em criar uma ameaça imaginária, com muito apelo principalmente entre os mais jovens: 80% dos jovens poloneses são contra aceitar refugiados. Antissemitismo é outro exemplo desse mecanismo de “othering” [eleger outros como culpados] e estigmatização de minorias. A comunidade judaica na Polônia é mínima, mas virou assunto para a Confederação e para a campanha de reeleição do presidente Duda.

A Confederação pode ter conseguido 6% ou 7% dos votos, mas seu impacto na política é, na verdade, maior, e isso assustou o partido governante, empurrando seu discurso mais para a direita.

As pesquisas mostram que o PiS perdeu popularidade [em novembro, 28% declararam votar no partido, uma queda de 12 pontos percentuais em seis meses]. A ida para a direita deu errado? Eles calculavam que haveria alguma perda, mas provavelmente não esperavam reação nesta escala nem esse tipo de atos.


RAIO-X

Rafał Pankowski, 44

O sociólogo e cientista político polonês dirige a associação antinazista e antirracista Nunca Mais. Estudou política, filosofia e economia na Universidade de Oxford e ciência política na Universidade de Varsóvia, onde se doutorou. É coordenador do Centro para Monitoramento de Racismo na Europa Oriental, professor da universidade polonesa Collegium Civitas e vice-editor-chefe da revista antifascista Nigdy Wiecej (nunca mais).

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