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Processo constituinte e povos indígenas no Chile

Segundo o censo de 2017, 12,8% da população se identifica como membro de alguns povos originais do país

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Victor Tricot

Cientista político. Professor externo da Universidade de Girona e diretor acadêmico da SIT Study Abroad. Doutor em Processos Políticos Contemporâneos, Universidade de Salamanca. Especializada em movimentos sociais e povos indígenas e movimentos na América Latina.

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Há um ano, esta semana, o chamado Acordo de Paz foi assinado por quase todos os partidos políticos no Congresso e desenhou o atual caminho constitucional no qual o Chile se encontra. É importante ressaltar que este Acordo foi o produto das mobilizações maciças que ocorreram em todo o país desde outubro de 2019.

O Acordo estabeleceu que seria realizado um plebiscito para consultar os cidadãos se eles optavam por remover a atual constituição –imposta pela ditadura– ou não. Duas opções também deveriam ser decididas, caso a alternativa de alterar a constituição vigente fosse bem-sucedida: através de uma convenção constitucional (inteiramente eleita pelo voto popular); e uma convenção mista (uma metade composta por parlamentares e a outra eleita pelos cidadãos).

Triunfaram amplamente as opções: alterar a constituição de Pinochet mediante uma convenção constitucional. Para isso, foi assegurada a paridade de gênero, mas não foram reservados assentos para os povos indígenas.

Em Santiago, chilenos formam fila para participar de plebiscito - 25.out.2020/Xinhua

Na semana passada, foi suspendida de novo a discussão acerca das cadeiras reservadas para os povos originários na Convenção Constitucional. Isto tem provocado problemas políticos, já que no mesmo dia em que a votação dos assentos reservados foi postergada, o novo Ministro do Interior, Rodrigo Delgado – o terceiro desde o início do governo de Sebastián Piñera– viajou com o Presidente Sebastián Piñera para a região da Araucanía, no sul do país.

A visita oficial buscava utilizar uma vez mais o conflito centenário entre o estado chileno e o povo mapuche como contexto para demonstrar a força e o controle que perdeu de forma vergonhosa desde a revolta de outubro passado.

Esta situação pode parecer, a priori, como algo habitual, ou mesmo lógico em termos dos procedimentos parlamentares ou governamentais. Entretanto, ela representa as últimas expressões de uma relação colonial que o Estado estabeleceu com os povos indígenas.

Um imaginário estabelecido desde a consolidação territorial do Chile como país e no qual nunca se considerou a presença, e muito menos a influência, dos povos indígenas que, eventualmente, foram fagocitados pela ideia de um estado para uma nação. O estado uninacional, unicultural e assimilacionista do século 19 ainda persiste, sem ter mudado de substância.

Se trata de uma relação assimétrica de dominação com manifestações concretas, uma naturalização de hierarquias territoriais, raciais e epistêmicas em termos de institucionalidade do país. Esta situação tem sua expressão política na falta de experiências sistemáticas de participação dos indígenas na vida política do país. Uma análise das autoridades indicadas ou eleitas no país desde 1990 até a atualidade evidencia que a presença indígena em cargos importantes é marginal, com poucas e ocasionais exceções.

Portanto, as sucessivas suspensões da votação das cadeiras reservadas para os povos indígenas não surpreendem. Esta atitude não apenas responde às contas conjunturais e eleitorais dos parlamentares, mas é também uma expressão de uma continuidade em termos da maneira de se relacionar com os povos indígenas que são constantemente relegados a posições secundárias, simbólicas e sem incidência real.

Isto, apesar do fato de que, segundo o último censo de 2017, 12,8% da população se identifica como membro de alguns povos originais existentes no país. Mesmo assim, eles nunca foram constitucionalmente reconhecidos.

Este ponto de inflexão da discussão constitucional deveria ser uma oportunidade, não somente para um reconhecimento mais do que tardio dos povos originários, mas, como várias organizações indígenas propuseram, para debater o reconhecimento do Chile como um estado plurinacional.

Uma forma de contribuir para isso –mas não obviamente a única– é aprovar e assegurar a participação dos dez povos indígenas existentes no país através de assentos reservados.

Por enquanto, esta discussão está presa. Apesar do fato de, em 30 de outubro passado, a comissão constitucional do Senado ter aprovado a proposta da oposição de criar 24 cadeiras reservadas que seriam acrescentadas às 155 convenções gerais aprovadas no plebiscito de outubro. Para que a proposta seja aprovada, são necessários 26 votos, mas a oposição conta apenas com 24.

Resta saber qual será o resultado. Se os votos necessários forem alcançados, ou se a oposição cederá às exigências da coalizão governante cujos líderes utilizam argumentos falaciosos, como a presidente da UDI (partido de direita e oficialista) que afirma que se as cotas são dadas aos povos indígenas, elas também devem ser dadas à igreja evangélica.

Esta visão colonialista e racista, sem dúvida, ignora a dívida histórica que o Estado tem com os povos originários devido à desapropriação pela qual foram submetidos. Esta visão também ignora que são nações diferentes, sujeitas a direitos coletivos reconhecidos pelo direito internacional.

Há vozes dissonantes de outras organizações, particularmente mapuche, que não concordam com nenhuma das propostas. Elas alegam que não precisam ser reconhecidas pelo Estado e que não participam do processo constituinte porque não o entendem como um novo modo de assimilação, já que a autonomia não é considerada. Estas facções afirmam que continuarão sua luta em seus territórios no sul.

Há vários aspectos do processo que podem ser criticados. Como o fato de que o plebiscito foi votado sem ter estabelecido previamente os detalhes das cadeiras reservadas, a falta de participação de algumas organizações no debate, ou mesmo os cálculos eleitorais que os partidos políticos estão fazendo de forma estratégica.

Mas, por outro lado, pode-se argumentar, como diz o historiador mapuche Fernando Pairican, que o que está em jogo é "um aprofundamento de um poder político indígena autônomo das nações originarias". A presença de voz e voto indígena proporcional a sua população na Assembleia Constituinte representaria uma mudança significativa.

A encruzilhada aberta em outubro de 2019 representa uma potencial mudança de paradigma na forma como o Estado se relaciona com os povos indígenas. E embora a história recente e passada não seja muito encorajadora, pode ser um ponto de inflexão. Isto, apesar da sombra gatopardista da transição (mudar para permanecer) que paira sobre o processo constituinte.

Tradução de Maria Isabel Santos Lima

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