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Trump escancara nosso anseio de que a realidade se dobre aos nossos desejos

Para republicano, aceitar a derrota política, que parece prenunciar a financeira e familiar, é admitir que o rei está nu

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São Paulo

Grande parte da educação dos filhos se resume a ajudá-los a abrirem mão das coisas sem surtar ou, pelo menos, sem nos fazer passar demasiada vergonha em público.

Processo penoso que requer de pais e educadores, além de um saco de Jó, a firme convicção de que cada um de nós deve encarar, mais dia ou menos dia, o fato de não sermos os donos do mundo. Tarefa ingrata, que coloca o amor entre adultos e crianças à prova e cuja insistência é fundamental.

Mas se a infância passa, não podemos dizer o mesmo do “infantil” em nós. Fantasias infantis são como o brinquedo do João Bobo. Não importa a idade ou o quanto você as empurra para longe, elas sempre voltam.

O presidente dos EUA, Donald Trump, antes de discursar nos jardins da Casa Branca, em Washington
O presidente dos EUA, Donald Trump, antes de discursar nos jardins da Casa Branca, em Washington - Mandel Ngan - 13.nov.20/AFP

São aquela inveja ou ciúmes que a gente se pega sentindo e que dão vergonha de confessar até para nós mesmos. Costumamos aplacar o constrangimento colocando a culpa no outro: não sou eu que estou com inveja, é ele que fica se exibindo com o carrão novo!

Se não é fácil para os pequenos aguentarem a raiva e a frustração diante de contrariedades com pais empenhados em ajudá-los a fazê-lo, imagina quando o ambiente é negligente ou, ainda, fomenta a fantasia onipotente da criança?

Não precisa imaginar muito, temos alguns exemplos tragicômicos conhecidos. Cômicos pelo anacronismo e falta de autocrítica, trágicos por se tratarem de adultos, cujas atitudes nefastas —muito longe da criança se jogando no chão do shopping— afetam a todos nós.

O caso mais recente tem sido o de Donald Trump, cujo narcisismo desmedido —diretamente proporcional a sua fragilidade psíquica— se une à falta de escrúpulos, ambição sem limites e o apoio de milhões de pessoas que se identificam com seu perfil de reizinho contrariado. Mas se o perfil é embaraçosamente infantil, o cálculo político e econômico por trás, obviamente, não o são.

Trump escancara nosso anseio fundamental de que a realidade se dobre aos nossos desejos para que possamos reinar absolutos sem fazer concessões ao outro.

Para Freud, essas concessões dolorosas são a própria condição da civilidade, e o mal-estar que delas decorre é um tema crucial para a psicanálise. Fica aqui a dica da primorosa edição em português de "O Mal-Estar na Cultura", de Freud, recém-lançada pela editora Autêntica (“Cultura, Sociedade e Religião: O Mal-Estar na Cultura e Outros Escritos”, 2020).

Mas se o preço da civilização é caro e se paga na forma de sofrimentos psíquicos diversos, sua ausência é a barbárie, com a qual sempre flertamos em uma tentativa cínica de driblar a castração.

A criança que imagina estar ganhando ao ficar com todos os brinquedos para si, logo perceberá que brincar sozinha pode ser terrivelmente solitário. Acompanhado apenas da própria paranoia, sua majestade, o bufão, está cercada de inimigos potenciais, os quais imagina que, como ele, não conheceriam o prazer de compartilhar e lhe roubariam tudo assim que pudessem.

De fato, sua claque é feita de sujeitos que se comprazem em acreditar em mitos, pois imaginam a possibilidade de vir a ser um. Recurso observável em pobres que votam na elite que lhes oprime, na esperança delirante de um dia pertencer a ela. Para Trump, aceitar a derrota política, que parece prenunciar a financeira e familiar, é admitir que o rei está nu.

Afinal, tirando o topete, pompa e circunstância, o que sobra desse vovozinho alaranjado, cuja esposa é retratada em memes suplicando para que lhe paguem o resgate?

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