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Trump mergulha período de transição em dúvidas caso seja derrotado por Biden

Em entrevistas, presidente não se comprometeu com passagem pacífica de poder

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Lúcia Guimarães
Nova York

Cinco horas depois de tomar posse, no dia 20 de janeiro de 2017, Donald Trump registrou sua campanha à reeleição. No segundo mês de governo, já fazia comícios e arrecadava milhões de dólares de doadores.

Se Trump for derrotado nas urnas por Joe Biden, só quem não observou os últimos quatro anos nos EUA esperaria dele civilidade ou recato institucional nas 11 semanas entre a eleição e a posse.

A cena tradicional do casal que parte esperando o casal que chega à Casa Branca? Nem pensar, dizem analistas políticos. Como o próprio Trump repete que sua derrota só ocorreria em caso de fraude eleitoral, é difícil imaginar o casal Donald e Melania assistindo à solenidade de posse na tarde fria de janeiro.

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante evento de campanha em Opa Locka, na Flórida - Brendan Smialowski/AFP

Nunca houve, na história moderna do país, tanta incerteza sobre o período que começa, neste ano, no dia 4 de novembro. O presidente, quando lhe perguntam se vai se comprometer com uma transição pacífica de poder, não diz um "sim" claro e passa a se descrever como vítima de um complô.

Entre os 45 presidentes americanos, dez não conseguiram se reeleger. O primeiro deles foi John Adams, o segundo chefe do Executivo, que escapuliu de Washington entre a noite de 3 e a madrugada de 4 de março de 1801 para não dar de cara com seu desafeto e sucessor, Thomas Jefferson.

Anos depois, Jefferson e Adams, dois ex-companheiros de luta pela independência americana, voltariam a se falar. Eles morreram no mesmo dia, 4 de julho de 1826. As últimas palavras de Adams, sem saber que o amigo já tinha expirado, foram “Thomas Jefferson ainda sobrevive”.

Todos os três presidentes que não conseguiram se reeleger no último século —Herbert Hoover, Jimmy Carter e George Bush pai— enfrentavam crises econômicas no momento em que disputavam o segundo mandato, Hoover a mais grave delas, a Grande Depressão da década de 1930.

Para um país que transformou a biografia de presidentes em lucrativa indústria editorial e em campo acadêmico, os EUA não produziram historiografia profunda sobre o período que separa a eleição da posse.

Essa lacuna talvez possa ser explicada pelo fato de que o país nunca se deparou com tanta erosão democrática perpetrada por uma presidente e sancionada por um partido no poder.

É intensa em Washington a especulação sobre o que um Trump derrotado pode fazer no governo, especialmente se o Partido Republicano perder o controle do Senado e ele quiser usar o período para se proteger da Justiça, beneficiar aliados ou se vingar de servidores públicos.

Mesmo presidentes que acataram a Constituição e o decoro do cargo usaram o poder durante a transição de forma a comprometer o mandato do sucessor. Um exemplo no século 20 foi Dwight Eisenhower, que não conseguiu, em 1960, eleger seu vice-presidente, Richard Nixon.

O general e ex-comandante das forças aliadas na Segunda Guerra saiu dando canetadas que se transformaram em granadas no colo do jovem eleito John F. Kennedy. Nos dez meses finais, Eisenhower autorizou planos secretos para derrubar governos no Congo e em Cuba.

Uma semana antes da posse, Eisenhower decidiu armar dissidentes para assassinar o ditador Rafael Trujillo, na República Dominicana. O desastre da invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, sob Kennedy, foi gestado em decisões tomadas pelo antecessor.

Há bons exemplos de que a selvageria de campanhas eleitorais se transforma em cordialidade na hora da transferência de poder. O melhor exemplo recente foi dado pelo presidente George Bush pai, derrotado em 1992 por Bill Clinton. A civilidade com que o presidente republicano tratou o jovem democrata culminou com o texto da carta que Bush deixou no Salão Oval para o sucessor.

“Desejo a você toda a felicidade”, escreveu Bush. “Eu nunca senti aqui a solidão que alguns presidentes descreveram.” Mais adiante, disse: “Não sou bom de conselhos, mas não deixe os críticos desencorajá-lo ou forçá-lo a mudar de curso. Seu sucesso será o sucesso do nosso país. Estou torcendo muito por você.”

“A carta é um exemplo ideal porque revela humanidade na despedida do poder”, diz à Folha o cientista político David Rothkopf. Ele acabar de lançar o livro “Traitor: A History of American Betrayal from Benedict Arnold to Donald Trump” (traidor: uma história de traição americana de Benedict Arnold a Donald Trump).

O livro examina uma história de ambição e desprezo pela integridade do Executivo, povoada por dissidentes e espiões. Mas Trump é o único presidente que o autor identifica como traidor da pátria.

“Nenhum presidente se comportou como ele”, diz Rothkopf, “aliando-se a adversários como a Rússia e deixando claro que seu único objetivo no cargo é o proveito próprio”. O autor acha cedo demais para avaliar se Trump emerge impune do mandato que exerceu até agora e do que fizer nos próximos meses.

“Trump nunca perde a oportunidade de fazer a coisa errada. É um bruto e deve continuar assim até o final.”

Rothkopf destaca que Biden pode ser o presidente eleito mais testado no período antes da posse, já que os republicanos se armam para contestar a apuração em vários estados. Não descarta a possibilidade de Trump renunciar pouco antes da posse para receber um indulto preventivo do vice Mike Pence —e evitar ser exposto judicialmente, não só pelo que fez na Casa Branca, como por suas ações como empresário antes de tomar posse.

Ele afirma acreditar que esse cenário caótico pode ser agravado por grupos armados de extrema direita, como os terroristas de uma milícia de Michigan, presos no início de outubro por tramarem o sequestro da governadora do estado, a democrata Gretchen Whitmer.

A controversa aprovação recente da nova juíza Amy Coney Barrett para a Suprema Corte trouxe de volta o truísmo “eleições geram consequências”. Mas é também verdade que o período de transferência de poder pode ter consequências graves.

Ao se despedir de Washington, em janeiro de 2001, Bill Clinton tentou como pôde alertar George Bush filho sobre a ameaça iminente representada por Osama Bin Laden. O governo Bush demorou vários meses para se concentrar num plano de ataque eficaz contra o líder da Al Qaeda. E veio o 11 de Setembro.

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