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Thomas Traumann

'Uncle Joe' é negociante sedutor, mas também inflexível

Relações do presidente eleito nos EUA com o Brasil dão pistas do que aguarda o governo Bolsonaro

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Thomas Traumann

Os EUA já tiveram um presidente, Ronald Reagan, que, numa solenidade em Brasília, em 1981, ergueu um brinde “ao povo da Bolívia”. Outro, George W. Bush, revelou surpresa ao saber, numa conversa em 2001, que havia negros no Brasil. Com o presidente eleito Joe Biden é improvável que essas gafes se repitam.

Nunca os EUA tiveram um chefe de Estado que conhece tão bem o Brasil e a política internacional.

O histórico de temas de Biden como senador vai das negociações de desarmamento nuclear com a extinta União Soviética às sanções à África do Sul do apartheid. Como vice de Barack Obama, ele atuou para normalizar relações com Cuba e na retirada das tropas americanas do Iraque.

O presidente eleito dos EUA, Joe Biden, discursa em evento em Wilmington, no estado de Delaware
O presidente eleito dos EUA, Joe Biden, discursa em evento em Wilmington, no estado de Delaware - Angela Weiss - 10.nov.20/AFP

Indicado por Obama para reconstruir as relações com o Brasil —abaladas pela tentativa do governo Lula de fechar um acordo de controle nuclear do Irã sem passar pela Casa Branca—, Biden alternou a “conversa suave e a hora de usar um porrete”, como ficou conhecida a diplomacia americana para a América Latina no século 20.

Um parênteses pessoal. Na minha infância, Biden era "Uncle Joe" muito antes de virar modinha.

A trágica morte da mulher e da filha num acidente de carro às vésperas da posse como o mais jovem senador dos EUA me foi contada tantas vezes que ele parecia mais próximo que o presidente Ernesto Geisel.

Meu tio materno, Wes Barthelmes, era chefe de gabinete de Biden naquele período. Assessor de imprensa de líderes democratas, como Robert Kennedy, ele foi designado pelo partido para reorganizar a vida de Biden depois da tragédia. Quando Wes morreu, o senador foi um dos oradores no funeral.

Quando Biden fez sua primeira visita ao Brasil, em maio de 2013, eu era porta-voz da presidente Dilma Rousseff, e ela nos apresentou. Raposa política, Biden se derramou em gentilezas. Foi na reunião entre representantes dos dois países, no entanto, que ele deixou impressão forte.

Em 2013, a Força Aérea brasileira conduzia concorrência para a compra de caças FX. Os favoritos eram os franceses da companhia Dassault e os suecos da SAAB. Biden chegou para virar o jogo para os americanos da Boeing.

Na conversa, o vice ouviu queixas de acordos frustrados com os EUA. Não retrucou. Assimilou cada crítica e respondeu perguntando qual meio-termo seria possível. No encontro, ofereceu transformar o Brasil em aliado militar preferencial dos EUA, o que permitiria intercâmbio de tecnologia sensível.

Questionado sobre como seria possível o Congresso americano aprovar esse acordo, Biden fez exposição sobre a influência política da Boeing. O recado era: se o Brasil escolhesse a Boeing, o Congresso dos EUA não seria entrave.

O plano de elevar as relações entre Brasil e EUA a um novo patamar naufragou meses depois, quando o ex-analista da agência de espionagem NSA Edward Snowden vazou documentos mostrando monitoramento de ministros, dirigentes da Petrobras e emails da presidente.

Acabaram ali as condições para a vitória americana numa licitação militar.

Acionado para apagar o incêndio, Biden pediu desculpas informalmente a Dilma e aceitou participar de comissão com o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Como revelou a colunista Mônica Bergamo, Biden foi afável, mas descartou compromisso de que no futuro os EUA não seguiriam espionando outros governos.

O Biden de 2013 deve servir de lição para o Brasil de Jair Bolsonaro. Ele será um presidente em busca de acordo —a prioridade agora é o controle do desmatamento na Amazônia—, mas será duro na defesa dos interesses americanos. O negociante é sedutor, mas inflexível.

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