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A consumação do último vestígio de democracia na Venezuela

Houve perseguições e encarceramento de deputados e ataques armados ao plenário em meio a sessões

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Xavier Rodríguez-Franco
Latinoamérica21

A última instância democraticamente eleita que restava na Venezuela foi sentenciada à morte nas recentes eleições legislativas. A votação, decretada pelo palácio de Miraflores, marca a conclusão de uma série de ataques ininterruptos contra a maior vitória política que a oposição registrou na Venezuela em duas décadas.

Foi um assédio agressivo, por todos os flancos, que durou por todo o mandato da Assembleia: perseguições e encarceramento de deputados, ataques armados ao plenário em meio a sessões, cortes de orçamento, bloqueio de todos os poderes constitucionais e sequestro da competência para apontar autoridades eleitorais.

Trata-se do maior ataque autoritário –por larga margem– a um Legislativo funcional latino-americano em muitas décadas.

Nicolás Maduro comemora vitória de seu partido nas eleições legislativas, boicotadas pela oposição
Nicolás Maduro comemora vitória de seu partido nas eleições legislativas, boicotadas pela oposição - Manaure Quintero - 8.dez.20/Reuters

Isso acontece à medida que avança a violação maciça de direitos humanos, a destruição do tecido produtivo e o recrudescimento do isolamento internacional do país. Uma atuação governamental em que a integridade eleitoral, os direitos civis, os serviços públicos ou a segurança alimentar da população parecem interessar em quase nada às autoridades, diante de sua aspiração ao controle total do Estado.

Perante esse contexto, e diante da versão mais agressiva do chavismo, a convocação para as eleições à Assembleia Nacional representou a oportunidade para desferir a estocada final ao âmbito institucional em que a oposição conquistou seus maiores avanços políticos.

Apesar do assédio, desde janeiro de 2019, e graças principalmente à legitimidade eleitoral de 2015, a oposição pôde exercer considerável influência, nacional e internacional. Ainda assim, a tendência crescente à abstenção surgida em 2017 terminou por favorecer a deriva autoritária e o desmantelamento da institucionalidade.

Eleição sem eleitores e sem vencedores

Concluída a contagem dos poucos votos válidos, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) anunciou os resultados na madrugada de 7 de dezembro. Apesar da credibilidade precária, os dados mostram uma queda inocultável na participação, de 74% dos eleitores em 2015 a 30,5% na mais recente votação.

Uma redução equivalente a 44% do eleitorado, ou metade dos eleitores que participaram da eleição passada. Dado que supera os 31% de redução na participação eleitoral produzido pela retirada da oposição da eleição legislativa de 2005.

Dessa maneira, o situacionismo, sem barulho nem festejo, retoma a maioria do Legislativo, não para avançar sua agenda política, mas para impedir que a oposição o faça, usando essa tribuna. Um espaço a menos a silenciar.

Depois da manobra arbitrária criada com a Assembleia Nacional Constituinte de 2017, fica claro que a condução política do chavismo não requer órgãos deliberativos e sim tribunais populares de castigo e escárnio público.

Ainda assim, que apenas 3 em cada 10 venezuelanos tenham votado, e que mesmo entre eles muitos tenham sido obrigados a fazê-lo por serem funcionários públicos, não convida a grandes celebrações.

Uma vez mais, o governo de Nicolás Maduro deixa claramente evidente a representação desproporcional da maioria, no processo eleitoral de 2020, capturando 93,6% dos assentos legislativos com os 60% conquistados dos poucos votos registrados como válidos pelo CNE. A mesma manipulação eleitoral realizada nas eleições de 2010.

De modo que, em 2021, a Venezuela terá um Legislativo monocromático, semelhante ao de 2005 e comparável apenas à Assembleia do Poder Popular de Cuba, à Assembleia Nacional da Nicarágua, ao Conselho Supremo da Quirguistão, ou à Duma Estatal russa.

Pronunciamentos internacionais

Com a passagem dos dias, foram surgindo expressões de repúdio, da parte das principais democracias do planeta. Um grupo de atores certamente minoritário no concerto geral das nações mas ainda assim influente, que apesar de reconhecer as eleições como ilegítimas, continua a não se posicionar claramente sobre a crise venezuelana.

No momento, elas mantêm seu apoio a Juan Guaidó, mas não se sabe qual será sua postura diplomática ou a agenda mínima de coordenação internacional ante a maior onda de emigração que a região já conheceu.

Na primeira semana posterior à eleição, União Europeia, Estados Unidos, Canadá e boa parte da América hispânica, excetuados Argentina, México e Bolívia, já haviam se pronunciado para rejeitar a eleição. Do lado do apoio, contam-se os votos esperados de Cuba e da Rússia, governos que não se caracterizam exatamente pela pluralidade de seus legislativos ou pela transparência eleitoral.

O apoio de mais de 40 democracias à oposição, ainda assim, de pouco servirá se não houver uma renovação estratégica que brinde alternativas que vão além da abstenção, já que assimetria e manipulação eleitoral são de esperar em uma ditadura.

É necessário um reposicionamento que prometa maior coordenação com a diáspora e os governos das Américas, um redesenho das formas de ativismo político e comunitário dentro do país, considerando o risco crescente de fazer política e tendo em conta além disso as zonas rurais e urbanas nas quais o Estado brilha pela ausência.

Essa situação cria um dilema para o governo interino, pois, à medida que o tempo passa, a continuidade e sustentabilidade do apoio externo que ele recebe se veem seriamente ameaçados.

Enquanto isso, a oposição consulta

No que tange à oposição, ela colocou em marcha um processo de consulta popular. É um mecanismo que busca determinar a vontade dos cidadãos quanto à permanência de Nicolás Maduro na presidência, a realização de eleições presidenciais e legislativas livres, e um apelo à comunidade internacional para que colabore com a causa democrática.

Ainda assim, a redação mesma das perguntas denota a falta de ideias e a imprecisão quanto ao caminho a seguir. Uma declaração de intenções, com três perguntas, sem qualquer efeito político imediato ou tangível.

Para além do debate sobre a participação e abstenção, o que a oposição busca com a consulta é renovar parte da legitimidade perdida, além de justificar de alguma maneira a possibilidade de prolongar seu mandato para além de 5 de janeiro de 2021 (a data oficial de mudança da legislatura).

Um desafio político importante para a continuidade política do governo interino liderado por Juan Guaidó, que, por mais que continue a se considerar presidente interino, deve sua legitimidade à posição de presidente da Assembleia Nacional criada pela eleição precedente.

Em suma, essas eleições legislativas manipuladas tornam ainda mais agudo o colapso e distanciam o país de uma transição democrática, com a supressão da pluralidade do Legislativo e do valor político do voto como instrumento de transformação social.

Dessa maneira, a via eleitoral se esvazia de qualquer conteúdo coletivo, e se desarticula o diálogo com uma sociedade dizimada, desterrada e reprimida. Em 2021, a Venezuela terá um Legislativo alheio ao sofrimento humano do país, sem respostas nem dissensões.

O Legislativo terá mais cadeiras mas 7,5 milhões a menos de eleitores estarão representados, muitos dos quais por estarem espalhados mundo afora em busca de melhores oportunidades.

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Tradução de Paulo Migliacci

Xavier Rodríguez-Franco

Cientista político licenciado da Universidad Central de Venezuela e da Universidad Autónoma de Barcelona. Mestre em estudos latino-americanos pela Universidad de Salamanca. Editor de Parlamundi Venezuela.

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