Aborto evidencia idas e vindas entre igreja e Estado na Argentina

País mantém tradição católica, mas governos têm avançado em questões que confrontam religião

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Buenos Aires

A relação entre política e religião na Argentina é uma história de enfrentamentos e acomodações.

O pensamento laico esteve muito presente na época da independência, no século 19, pois era uma forma de se diferenciar da tradição ibérica, vista como um atraso por vários dos independentistas e dos pensadores que desenharam as primeiras leis e projetos do país independente.

A União Cívica Radical, mais antiga grande força política do país, tem no laicismo uma das principais bandeiras. Sob seu comando nos anos 1920 e 1930, principalmente, a Argentina manteve uma forte separação entre a igreja e o Estado.

Manifestante antiaborto participa de protesto contra a legalização da prática, aprovada pelo Senado, na Argentina
Manifestante antiaborto participa de protesto contra a legalização da prática, aprovada pelo Senado, na Argentina - Martin Villar/Reuters

Esse cenário mudou bastante com o peronismo, que voltou a valorizar a influência da igreja na sociedade. O general Juan Domingo Perón (1895-1974), nos anos 1940, aproximou-se da Igreja Católica de modo intenso, como uma maneira de se projetar e ganhar popularidade.

Porém, quando Perón passou a promover o culto à sua própria personalidade, distribuindo, por exemplo, manuais escolares com as imagens dele e de sua então mulher, Eva Perón (1919-1952), como patronos da pátria, a relação começou a azedar.

Seu crescente protagonismo nos atos públicos, deixando a igreja de lado, gerava críticas fortes das autoridades católicas, que começaram a apoiar os militares, responsáveis, em 1955, pelo golpe que derrubaria Perón.

Pouco antes, entretanto, os seguidores de Perón, estimulados por seus ataques verbais aos religiosos, queimaram diversas igrejas em Buenos Aires, enquanto sacerdotes foram presos e perseguidos. A derrubada do presidente recolocou os religiosos numa posição de poder.

No golpe de 1976, a igreja também permaneceu ao lado dos militares e apoiou várias ações da repressão. Em algumas situações, chegou a atuar diretamente em atos delitivos, como na mediação da entrega de bebês que nasciam nos centros clandestinos de tortura a pais adotivos alinhados aos militares.

Essa relação tão próxima deu à instituição má fama entre parte da sociedade, principalmente na esquerda e no peronismo, depois da redemocratização do país até os dias de hoje.

Atualmente, existe um setor da igreja mais tradicional e ligado à classe mais endinheirada, à aristocracia e à direita e outro mais vinculado a projetos sociais, como o dos "curas villeros", padres que atuam em favelas. A essa vertente pertence o papa Francisco, que se posicionou fortemente contra o aborto na votação de quarta-feira.

Nas semanas anteriores à votação, tanto o setor mais tradicional da igreja na Argentina, representado pela Conferência Episcopal Argentina (CEA), como os "curas villeros" condenaram a legislação.

Na quarta, a CEA emitiu um comunicado dizendo que "esta lei aprofundará ainda mais as divisões no nosso país". Já os "villeros", como o famoso padre Pepe, afirmaram que as mulheres pobres da Argentina estavam sendo usadas como "desculpa para aprovar uma lei com a qual não estão de acordo".

Do Vaticano, o papa também mostrou sua rejeição por meio de mensagens no Twitter contra a aprovação.

A igreja mantém, porém, uma relação de certa dependência com o Estado, que oferece subsídios para pagar padres e bispos e patrocina parte da educação católica, correspondente a 36% das escolas do país.

A Constituição argentina, no entanto, determina que o Estado é laico e que há liberdade de culto. Uma reforma de 1994 eliminou o último resquício legal que vinculava as duas instituições: a necessidade de que o presidente da República fosse católico. Em 1989, essa norma obrigou Carlos Menem, originalmente muçulmano, a se converter ao catolicismo.

Segundo dados do Conicet (Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas), 62,9% dos argentinos se dizem católicos, 18,9% afirmam não ter religião e 15,3% se declaram evangélicos.

Durante as últimas décadas, os governos democráticos aprovaram leis que foram de encontro aos interesses da igreja, o que causou críticas à época, sem que, porém, houvesse danos maiores à relação.

Entre as medidas estão o divórcio (1987), a lei de educação sexual nas escolas (2006), o matrimônio igualitário para homossexuais (2010) e a lei de identidade de gênero (2012), que permitiu a mudança de sexo nos documentos de identidade.

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