Descrição de chapéu Retrospectiva da década

Ao transformar luto em luta, comunidade T conquistou direitos nos anos 2010

Assassinatos marcados por crueldade extrema contrastam com avanços e espaço político recorde

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São Paulo

Dandara dos Santos foi espancada a pau e pedra, torturada e morta a tiros por cinco homens no bairro do Bom Jardim, em Fortaleza. A violência que culminou em seu assassinato foi filmada e publicada nas redes sociais. Era 15 de fevereiro de 2017.

Em 23 de junho de 2015, Laerte publicou na Folha charge em que duas crianças, uma vestindo rosa e outra vestindo azul, estão sentadas diante de um cinzento adulto que segura um chicote.

“Claro que existe ideologia de gênero”, explica o adulto cinza, “é tudo que foge da minha ideologia”. No Painel do Leitor, dois dias depois, uma reação: “Ele [Ela, Laerte] trata o gênero humano como uma questão de ideologia, mas essa é uma questão puramente biológica”.

Evoco esses episódios pois, embora separados em dois anos, são atravessados por fenômenos similares e evidenciam uma síntese possível para a travessia da comunidade T nesta última década.

Laerte
A cartunista e chargista Laerte - Divulgação

De um lado, a charge que comenta esta cambalhota da terra plana: o moinho de vento da “ideologia de gênero”, um dispositivo-discursivo-espantalho que nos obriga a primeiro defender o óbvio —a terra é redonda— para depois podermos conversar sobre o que realmente interessa, aquilo que é de fato passível de discussão. De outro lado, a realidade efetiva: Dandara estendida na calçada, pedindo socorro.

O óbvio: pessoas transgênero, travestis, transsexuais e não-binárias existem. Existem independentemente da biologia que se estude, da psiquiatria que registre, do currículo escolar que se aprove, da exposição de arte que um grupo político não gostou. Da mesma forma que terra não se achata só porque alguém a crê plana, pessoas T existem, isto não é discutível.

E não importa quantas apostilas de biologia ou livros sagrados sejam usados para naturalizar as desigualdades e as violências originadas por classificações e padronizações de gênero e sexualidade. Pessoas trans continuamos existindo.

O que é uma escolha, no entanto, é a forma como as sociedades tratam suas populações vulneráveis e quais iniciativas concretas são tomadas (ou não) para garantir (ou as privar de) seus direitos. Nos últimos dez anos, vivemos os produtos e os processos de algumas dessas escolhas.

A falácia da “ideologia de gênero” foi resgatada dos porões do Vaticano dos anos 1990 e importada para o discurso da bancada evangélica brasileira (e mais tarde para o bolsonarismo) em 2014, em um movimento político que desejava excluir dos planos de educação discussões como machismo, diversidade, sexualidade e educação sexual.

Logo veio o belicismo, “o combate à ideologia de gênero”, essa ameaça difusa que compreende desde uma palestra de Judith Butler no Sesc até os professores do ensino fundamental e passa por manifestações do movimento feminista e pelo golden shower de Carnaval.

E, em 2017, dez meses após o assassinato de Dandara, o governo de Michel Temer excluiu da base nacional comum curricular o tema da discriminação de gênero.

Cabe, então, a pergunta: a quem se combate quando se combate “a ideologia de gênero”? Quais são as implicações práticas deste conflito? Como e a quem afeta?

Um mês após a publicação da charge de Laerte na Folha, a socióloga Berenice Bento apresentou no congresso Desfazendo o Gênero, na Universidade Federal da Bahia, o princípio de sua pesquisa acerca do assassinato de mulheres trans e travestis no Brasil.

O trabalho revelou que 486 pessoas trans foram assassinadas no Brasil entre janeiro de 2008 e abril de 2013, o que fez do país o que mais registrou homicídios de pessoas T no mundo.

Mais a frente em sua pesquisa, consolidada em artigo que cataloga as características e padrões desses assassinatos, Bento propôs o termo transfeminicídio, que “se caracteriza como uma política disseminada, intencional e sistemática de eliminação da população trans no Brasil, motivada pelo ódio e nojo”.

São assassinatos que ocorrem geralmente em espaços públicos, marcados por brutalidade e crueldade extremas, o que Bento chama de “morte ritualizada”, quando não há não há somente a intenção de matar, há a intenção de infligir sofrimento e humilhação até que se chegue ao assassinato de fato.

As mortes de Dandara dos Santos (1972-2017), Quelly da Silva (1984-2019), Daniela Rodrigues (1999-2020), Branca (1983-2020), Ester Vogue (1986-2020), para citar alguns casos, são frutos diretos dessa política transfeminicida.

Além da brutalidade, entre outras características do transfeminicídio estão: o não reconhecimento do gênero em noticiários, mesmo após a morte (daí a demanda pelo respeito aos pronomes, tão debochada por tantas vozes à direita e à esquerda) e o fato de que frequentemente familiares não reclamam o corpo das vítimas, não havendo “nem luto e nem melancolia”.

Mas também conquistas foram alcançadas. O direito à retificação de documentos, após decisão do STF em 2018, é uma delas. Assim como o acesso às cirurgias de redesignação realizadas pelo SUS. E, em especial, a última década viu crescer a participação de pessoas trans na política institucional.

Vinte e oito anos após a eleição da primeira pessoa trans a um cargo político no Brasil —Kátia Tapety, vereadora do município de Colônia do Piauí (PI) — a eleição de 2020 foi um recorde para a comunidade, com 15 parlamentares eleitos.

Duda Salabert (PDT) e Linda Brasil (PSOL) foram as vereadoras mais votadas de Belo Horizonte e Aracaju. Érika Hilton (PSOL) e Thammy Miranda (PL) ficaram entre os mais votados em São Paulo, maior colégio eleitoral do país.

Hilton e Miranda são uma novidade não apenas por serem a primeira mulher trans e o primeiro homem trans eleitos à vereança na cidade, mas também porque são ideologicamente opostos.

Em comum, as propostas de ambos atentam para o combate à desigualdade de gênero e à violência contra a mulher. Diferente da psolista, cujo programa apresenta 14 propostas voltadas à comunidade LGBT, Miranda não apresentou até o momento iniciativas específicas para essa comunidade.

Esses vereadores irão encontrar consensos rumo a políticas públicas para a comunidade trans? A próxima década vai dizer. A transfobia contra ambos, no entanto, está viva e ativa nas redes sociais, sendo fácil encontrar ataques a ambos, alvos de uma violência de mesma origem.

E é essa violência, sim, que é ideológica e não tem nada de natural.

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