Descrição de chapéu The New York Times

Após mais de 70 anos, piloto camicase conta como escapou da morte na 2ª Guerra Mundial

Kazuo Odachi, 93, é um dos últimos membros vivos de um grupo que nunca quis sobreviver

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tóquio | The New York Times

Durante mais de seis décadas, Kazuo Odachi guardou um segredo: aos 17 anos ele se tornou um piloto camicase, um dos milhares de jovens japoneses preparados para dar a vida em missões aéreas suicidas no final da Segunda Guerra Mundial.

Depois ele formou família e fez carreira na polícia de Tóquio, mas guardou o segredo de todos, até de sua mulher, que só sabia que ele serviu como piloto da Marinha japonesa.

Odachi acreditava que seria difícil explicar sua experiência a uma sociedade que via os camicases principalmente como patriotas maníacos, que se ofereciam para um sacrifício voluntário inimaginável.

Com o passar dos anos, conforme as complexas relações do Japão com a guerra mudavam, Odachi começou a contar sua história a um pequeno grupo de amigos. Em 2016, publicou um livro de memórias, contando como ia dormir toda noite pensando se amanhã seria sua vez de morrer por uma causa perdida.

O livro foi lançado na tradução em inglês em setembro passado, o 75º aniversário do fim do conflito.

Kazuo Odachi, 93, um ex-piloto camicase, em sua casa em Tóquio
Kazuo Odachi, 93, ex-piloto camicase, em sua casa em Tóquio - Noriko Hayashi - 7.set.20/The New York Times

Odachi, 93, um dos últimos membros vivos de um grupo que não estava destinado a sobreviver, disse que pretendia ser a memória dos jovens pilotos cujo valor e patriotismo foram explorados.

"Não quero que ninguém esqueça que o país maravilhoso que o Japão é hoje foi construído sobre o alicerce de suas mortes", disse ele em uma entrevista recente em sua casa.

Os camicases são o símbolo mais poderoso da guerra no Japão, um exemplo vívido dos perigos do nacionalismo fervoroso e do fanatismo marcial. Mas, conforme a geração que sobreviveu à guerra se extingue, campos políticos opostos tentam reinterpretar os camicases para um público ainda dividido sobre o legado do conflito.

Para a direita, os camicases são um símbolo de virtudes tradicionais e de um espírito de autossacrifício que consideram ausentes no Japão moderno. Para a esquerda, fazem parte de uma geração destruída pelo militarismo japonês e um forte lembrete da importância de o país manter o pacifismo do pós-guerra.

O próprio Odachi tem pouco interesse por política. Hoje ele recebe visitantes em sua casa num subúrbio de Tóquio, onde narra vividamente cenas da guerra, pisando em pedais imaginários dos aviões e puxando com valentia um suposto manche de comando.

Sua história desafia os simples estereótipos frequentemente evocados por conservadores e liberais no Japão. Ele foi voluntário para voar em uma guerra que, no seu entender, o país não venceria. Estava preparado para morrer para proteger os que ele amava, mas não para jogar fora sua vida.

Hoje ele é solidamente contra a guerra e pensa que a Constituição pacifista do Japão é ótima, mas continua sendo um firme advogado do direito do país à autodefesa.

Odachi não se arrepende de sua decisão de se alistar e visita o santuário de Yasukuni —onde gerações de soldados japoneses mortos são venerados ao lado de alguns famosos criminosos de guerra— várias vezes por ano para consolar a alma de seus amigos que morreram em combate.

Criado em uma aldeia próxima a uma base aérea, sempre foi fascinado por aviões e quando a guerra começou ele decidiu que um dia seria piloto. Alistou-se nas Forças Armadas do Japão em 1943 e entrou para o Yokaren, grupo de elite de adolescentes treinados como pilotos da Marinha.

Odachi explicou que os Yokaren eram diferentes de outros camicases, estudantes arrancados das escolas e destinados a morrer com pouco treinamento. Mas os rapazes do programa de Odachi foram preparados para morrer em combate aéreo mesmo antes do recurso desesperado do Japão às missões suicidas.

Quando chegou a Taiwan, ocupada pelos japoneses, em agosto de 1944, a guerra entrava na fase final.

As forças japonesas tinham sido derrotadas pela superioridade tecnológica americana e a capacidade avassaladora da máquina de guerra dos Estados Unidos. Uma vitória aliada parecia cada vez mais inevitável, e as táticas japonesas começaram a exigir um sacrifício humano ainda maior.

Nas batalhas aéreas, os pilotos eram instruídos a "escavar o inimigo com nossas próprias hélices", escreveu Odachi. "É claro que a morte era uma certeza caso isso acontecesse, mas pelo menos levaríamos conosco o inimigo."

Retrato de Kazuo Odachi, ex-piloto camicase, aos 18 anos
Retrato de Kazuo Odachi, ex-piloto camicase, aos 18 anos - Noriko Hayashi - 7.set.20/The New York Times

A tática se baseava na ideia de que os pilotos japoneses eram mais dispostos a morrer que seus inimigos.

A força dessa convicção foi testada em outubro de 1944, quando a Marinha japonesa decidiu apostar tudo para deter um ataque americano a suas forças nas Filipinas, no que ficou conhecido como a batalha do Golfo de Leyte. Oficiais japoneses explicaram a Odachi e seu grupo o plano de usar missões suicidas e pediu voluntários. Houve um silêncio de perplexidade.

Só quando os oficiais começaram a criticá-los os primeiros homens se apresentaram com hesitação, escreveu ele. "Fomos basicamente forçados a cometer suicídio", lembrou Odachi.

Em 25 de outubro, ele presenciou a primeira missão bem-sucedida de pilotos suicidas decolar de uma pista bombardeada nas Filipinas. Mas Odachi e seus companheiros logo se viram presos na ilha-país quando bombardeiros dos EUA destruíram muitos dos aviões restantes de seu esquadrão.

Meses depois, ele e outros escaparam para Taiwan, onde, em 4 de abril de 1945, recebeu ordens para sua primeira missão em dez meses como piloto suicida.

O Zero de Odachi —um ágil avião de caça que dominou os céus do Pacífico nos primeiros anos da guerra— estava carregado com uma bomba de 500 kg, o que o deixava tão pesado que seria impossível manobrar para escapar. Quando caças americanos o avistaram, despejou a bomba no mar e conseguiu escapar.

Em sua missão seguinte, seu grupo não conseguiu encontrar um alvo. As seis missões seguintes também terminaram em fracasso. Depois de cada tentativa, ele esperava seis meses por novas ordens. Toda noite, os oficiais anunciavam quem voaria para a batalha no dia seguinte.

"Parecia a conferência da pena de morte, era de virar o estômago", escreveu ele.

Mas afinal, disse Odachi, "tínhamos nos tornado indiferentes a questões de vida e morte. Nossa única preocupação era que o momento final valesse a pena".

Esse momento, porém, nunca chegou. Em sua última missão, o avião se preparava para decolar quando um membro da equipe em solo correu para a pista, gritando e acenando para o esquadrão parar. O imperador tinha acabado de anunciar a rendição do Japão. Odachi ia voltar para casa.

No retorno, quando um trem o levou por entre os restos de Hiroshima bombardeada, ele entendeu que a guerra tinha terminado. Em sua casa em Tóquio, recebeu a espada curta cerimonial em homenagem a sua posição de camicase e a atirou na lareira da casa, onde ela se fundiu numa pelota de aço.

Suas lembranças da guerra são um punhado de fotos e um presente que recebeu de uma jovem que conheceu em Taiwan: uma echarpe de seda feita de um paraquedas, bordada com flores de cerejeira e uma âncora azul, símbolo dos Yokaren. Odachi nunca revelou a identidade da moça. É uma das poucas coisas sobre a guerra que ele ainda resiste a contar.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.