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China pode ter sua primeira legislação para regulamentar coleta de dados pessoais

País registra uso crescente de tecnologia de reconhecimento facial por governo e empresas

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Qin Jianhang Qian Tong Han Wei
Caixin

Depois de uma briga na Justiça que se arrastou por um ano, o professor de direito Guo Bing, 34, conquistou uma vitória parcial na primeira contestação judicial na China contra o uso crescente de tecnologia de reconhecimento facial pelo governo e por empresas.

Um tribunal na cidade de Hangzhou, no leste do país, decidiu em 20 de novembro que um parque zoológico local violou um contrato com Guo quando mudou seu sistema de ingresso sem o consentimento dele, passando de identificação por impressão digital para reconhecimento facial.

O professor moveu a ação em outubro de 2019, quando o parque disse que ele teria que se submeter a reconhecimento facial para que seu passe anual continuasse válido.

Mas o tribunal confirmou o direito do parque de utilizar tecnologia biométrica em operações comerciais.

O processo foi acompanhado de perto e gerou discussões acirradas, isso porque dizia respeito a uma das maiores preocupações públicas na sociedade chinesa moderna: o ponto de equilíbrio entre o uso cada vez maior de novas tecnologias de dados, por um lado, e a proteção da privacidade pessoal, por outro.

Nos últimos anos, vários casos de violações de dados reforçaram os chamados públicos para que o governo aprove uma lei unificada de proteção das informações pessoais dos cidadãos.

Nos sete primeiros meses do ano, mais de 8.000 aplicativos e 478 empresas foram punidos por reguladores devido à violação das regras sobre a coleta de dados.

A crescente utilização de novas tecnologias pelo Estado também é vista como um problema sério. Em novembro, organismos reguladores da internet intimaram judicialmente os responsáveis por 35 aplicativos de telefones celulares por violarem regras sobre a coleta de dados pessoais —mas vários dos apps em questão eram operados por órgãos governamentais locais.

Em resposta, os principais legisladores da China estão revendo um projeto de lei sobre a proteção de dados pessoais. Será a primeira legislação do tipo no país a regulamentar a coleta de dados pessoais, incluindo informações sobre compras online e dados biométricos.

O Comitê Permanente do Congresso Nacional do Povo (CNP) divulgou, em 21 de outubro, o projeto da Lei de Proteção das Informações Pessoais, pedindo comentários da população, após ter completado as três primeiras revisões da legislação.

Dividida em oito capítulos, a lei visa garantir proteção ampla aos 940 milhões de usuários de internet na China, cada vez mais preocupados com a segurança de seus dados, na medida em que as novas tecnologias alimentadas pelo big data continuam a penetrar em cada aspecto da vida social.

O projeto de lei inclui uma seção que define o papel do estado na coleta de dados pessoais, exigindo que as agências governamentais obedeçam os mesmos princípios de consentimento que as empresas, salvo certas exceções especificadas pela lei e os regulamentos.

Desde 2003 o Conselho de Estado da China estuda a proteção legal das informações pessoais, mas o trabalho de redação de uma legislação unificada só começou em 2017.

No momento, a responsabilidade pela proteção da privacidade é compartilhada por vários estatutos, incluindo uma decisão oficial do Comitê Permanente sobre a proteção de dados online, uma emenda à Lei Criminal, a Lei de Segurança Cibernética e o recém-aprovado Código Civil.

O projeto de lei define as informações pessoais como sendo as que são “registradas por meios eletrônicos ou outros em relação a pessoais naturais identificadas ou identificáveis, excluindo informações anônimas”.

Um fato importante é que a legislação deve consagrar o princípio do consentimento informado —o que significa que todas as entidades que lidam com dados pessoais teriam que informar as pessoas claramente e de antemão sobre como pretendem usar essas informações e solicitar o consentimento explícito dos indivíduos ou de seus responsáveis legais antes de fazê-lo.

O documento também define penalidades graves para violações, comparáveis às penalidades previstas no Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia, visto como a lei de privacidade e segurança mais dura do mundo.

Segundo informações obtidas pela reportagem, a possível mudança gerou discussões entre empresas dos setores de tecnologia e publicidade, que argumentaram que a adoção de leis mais rígidas pode prejudicar seu crescimento.

Enquanto isso, alguns especialistas legais receiam que o projeto de lei ainda careça de detalhes e aspectos específicos, o que pode dificultar sua implementação.

Uma pessoa que acompanha o trabalho legislativo de perto disse que ainda há tempo para a nova lei ser revista e que os parlamentares estão buscando um ponto de equilíbrio entre a privacidade pessoal, o crescimento das empresas e o interesse público.

“Pensando no futuro, o fluxo de dados é um bem e também uma responsabilidade, tanto sob o o ponto de vista comercial quanto legal”, comentou Deng Zhisong, sócio sênior do escritório de advocacia Dacheng, em Pequim.

Buscando o ponto de equilíbrio

Já houve casos que mostraram que a proteção dos dados pessoais pode ser uma questão de vida ou morte. Em 2016, uma estudante do ensino médio na província de Shandong morreu de ataque cardíaco depois de perder quase 10 mil yuans (R$ 7.654 na época) em um golpe aplicado pelo telefone por pessoas que obtiveram seus dados pessoais ilegalmente.

O caso expôs uma falha das autoridades educacionais locais na proteção de dados pessoais, motivando um clamor público por ação legal.

Os internautas chineses descobriram que estão cercados por volumes crescentes de conteúdos online altamente personalizados. Uma busca rápida por determinados produtos nos grandes sites de comércio eletrônico pode levar a uma série de anúncios pop-up de artigos semelhantes.

“Quem me conhece melhor não sou eu mesmo, mas os gigantes da internet”, comentou uma pessoa que faz compras online.

Está em ação nos bastidores uma tecnologia avançada de análise de dados que é amplamente utilizada por empresas que atuam na internet para criar um perfil de cada usuário, perfil esse utilizado em um trabalho de marketing altamente direcionado.

Reunindo volumes imensos de dados sobre os usuários, gigantes tecnológicas como o Grupo Alibaba e a Tencent Holdings podem —com base em seus gastos diários, seus deslocamentos e seus interesse—traçar perfis precisos dos usuários e prever suas demandas, e então utilizar as informações para direcionar os internautas aos bens e serviços que mais provavelmente vão adquirir.

A nova lei de proteção de dados pode modificar esse quadro, impondo restrições maiores às informações que as empresas podem coletar dos usuários e como podem utilizar essas informações.

Segundo o projeto de lei, os coletores de dados precisam informar os indivíduos sobre por que seus dados pessoais serão colhidos e como serão utilizados, além de terem que obter consentimento explícito de antemão.

Ainda pelos termos do projeto de lei, as pessoas terão o direito de pedir correções ou exclusões de dados, e as entidades que usam as informações pessoais não poderão colher mais informações do que aquelas necessárias para completar tarefas declaradas. Tampouco poderão usar um produto ou serviço se o usuário negar o consentimento ao uso de suas informações ou se o revogar posteriormente.

Segundo a reportagem, em uma reunião realizada em novembro para discutir a nova lei, representantes do setor da internet argumentaram que essas novas exigências serão “muito duras” para as empresas.

Os representantes disseram que as exigências serão difíceis de implementar e que elevarão os custos de compliance das empresas, prejudicando sua receita publicitária.

O projeto de lei prevê uma isenção das regras de consentimento quando os dados são anonimizados, ou seja, os detalhes de identificação são removidos. Funcionários de empresas que trabalham no ramo disseram que isso ainda prejudicaria suas operações de marketing, já que informações anonimizadas as impossibilitariam de direcionar conteúdos customizados aos usuários.

“O tempo do acesso fácil a volumes imensos de dados sobre usuários ficou no passado”, disse um especialista da indústria. Para ele, com regras mais rígidas sobre a coleta de dados, visando proteger a privacidade dos usuários, a tecnologia de análise de dados usada pelas empresas terá que enfrentar obstáculos maiores.

Uma pessoa da indústria publicitária, que não quis ser identificada, disse que as regras propostas são rígidas demais e que carecem de especificações.

“É verdade que ocorrem confusões no setor, isso porque há muito tempo falta uma regulamentação do uso de dados”, disse ele. “Mas o problema não será resolvido com uma regra geral única.”

Os novos modelos econômicos subsidiados por tecnologia de dados prosperaram na China em parte devido ao ambiente regulatório relativamente flexível. Cifras oficiais mostram que a chamada nova economia foi responsável por 16,3% do PIB (Produto Interno Bruto) chinês em 2019.

O acesso a dados é a espinha dorsal de tecnologias emergentes como o reconhecimento facial e a condução autônoma de automóveis, áreas chaves em que empresas chinesas buscam uma vantagem competitiva.

“Os usuários querem ver sua privacidade protegida, enquanto as empresas precisam de lucros”, comentou Fang Yu, especialista jurídico da Academia Chinesa de Tecnologia de Informação e Comunicação. “A proteção da privacidade encerra custos. Às vezes é um jogo de soma zero.”

Fang disse que a lei proposta deve especificar melhor como as regras serão aplicadas em diferentes setores, para atender a necessidades diferentes.

Por exemplo, disse ele, “os desenvolvedores de condução autônoma precisam colher dados sobre pedestres para aperfeiçoarem o algoritmo. Se precisarem obter o consentimento de cada pedestre individual, será impossível desenvolver a tecnologia.”

He Yuan, especialista em legislação de dados na Universidade Jiaotong, em Xangai, disse que a legislação precisa especificar os direitos legítimos das empresas em matéria de coleta de dados, para deixar espaço para as empresas se crescerem.

“A economia nova é inteiramente baseada em dados, e as informações pessoais são a parte mais valiosa disso”, disse He. “O projeto de lei enfatiza a proteção da privacidade, mas não diz o suficiente sobre como as informações podem ser utilizadas.”

O papel do Estado

“As agências governamentais que administram serviços públicos colhem um volume enorme de dados pessoais, mas ao mesmo tempo traçam regras e são reguladoras”, disse Zhang Xinbao, especialista legal que participou da redação do projeto de lei.

Ele disse que ainda precisa haver um detalhamento maior dos requisitos para órgãos governamentais.

Vários membros do Comitê Permanente do Congresso Nacional do Povo sugeriram regras especificadoras para departamentos do governo, incluindo exigências mais claras relativas ao âmbito da coleta de dados, os procedimentos a serem seguidos e o período de armazenagem dos dados.

O professor de direito Wang Xixin, da Universidade de Pequim, disse que a seção que trata da coleta de dados pelo estado deve ser ampliada para incluir requisitos mais detalhados.

Para ele, as agências governamentais precisam buscar um ponto de equilíbrio entre a eficiência da utilização de dados para o interesse público e a proteção da privacidade dos indivíduos.

O projeto de lei também estipula o uso de sistemas de vigilância e dispositivos de identificação pessoal em áreas públicas, definindo que esses dados sejam utilizados apenas para finalidades de segurança pública e não sejam compartilhados com terceiros sem o consentimento dos indivíduos envolvidos.

A legislação é vista como a resposta longamente aguardada ao uso crescente da tecnologia de reconhecimento facial.

Guo Bing disse que o projeto de lei é um avanço, mas que precisa ir mais longe, já que seu texto é suficientemente impreciso para permitir manipulações.

Ele defende que os legisladores introduzam um sistema de licenciamento e requisitos mais detalhados sobre o uso de reconhecimento facial em espaços públicos.

Debates regulatórios

O projeto de lei propõe uma multa máxima de 50 milhões de yuans (R$ 37 milhões) ou o equivalente a até 5% da receita do ano anterior sobre aqueles que manuseiam informações pessoais ilegalmente. É uma das penalidades mais elevadas do mundo.

“A penalidade pesada transmite um sinal de controle sério e reflete a urgência da necessidade de a privacidade ser protegida”, comentou Chen Yu, sócio do escritório de advocacia King & Capital.

Mas as penalidades pesadas foram criticadas por empresas, muitas das quais receiam que o projeto de lei possa oferecer a autoridades locais uma margem excessiva para impor punições.

Algumas especialistas legais disseram que o projeto de lei não explicita qual departamento deve comandar a implementação da lei. Segundo o texto provisório, a fiscalização da proteção à privacidade deve ser compartilhada por várias agências do governo central, além de departamentos governamentais locais. Especialistas preveem que isso possa levar a uma sobreposição de fiscalizações.

Alguns especialistas opinam que a China deveria seguir o exemplo da União Europeia, criando uma agência regulatória única que assumisse a supervisão abrangente. Outros consideram que isso seria difícil na prática, já que exigiria uma reforma maciça do governo.

Para Fang, uma maneira mais viável para a China seria criar um organismo regulador que assumisse a responsabilidade unificada de definir regras e padrões e supervisionar a implementação das mesmas pelas autoridades locais.

“Há mais de 20 agências governamentais centrais que têm deveres de proteção de privacidade, e cada uma delas tem representações locais que descem até o nível dos condados”, explicou Wang Rong, especialista em políticas de dados no Instituto Tencent de Pesquisas.

“Se o poder de implementação da lei for dado a cada uma delas, será criado um campo de batalha de interesses.”

Tradução de Clara Allain

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