Descrição de chapéu Retrospectiva da década

Da sofrência à pisadinha, década fez Brasil se render ao som das periferias

Com hits como 'Camaro Amarelo' e 'Baile de Favela', período teve até 'contaminação cruzada' com funknejo

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O ano é 2011. Primeira mulher eleita. Janeiro, verão, dólar a R$ 1,85. Uma sensação de país do futuro, e na caixinha de som do quiosque da praia de Ponta Verde em Maceió toca repetidamente a música do momento: “Nossa, nossa, assim você me mata/ Ai se eu te pego, ai, ai, se eu te pego!”.

Diretamente do Paraná, o cantor Michel Teló ganhou o norte e o sul do mundo. Música obrigatória em qualquer churrasco no bairro do Grajaú (RJ) ou em bares da cidade fria de Helsinque, na Finlândia. Esse é o poder da cultura brasileira. Chegamos a qualquer lugar, causamos e vamos embora.

Mas 2011 foi muito mais que apenas Michel Teló na sofrência, dancinhas de Neymar e Ganso na final da Libertadores pelo Santos e o rap de São Paulo.

“Estamos de volta na pegada, esse moleque é bam, bam, bam/ Quero ver as novinhas na posição da rã.” Lembra dessa? Se você for do Sudeste, provavelmente não. Essa música, da dupla Mc Metal e Cego, de Pernambuco, fez sucesso no Norte e no Nordeste, a ponto de ser regravada no mesmo ano pelo grupo Aviões do Forró.

No Sudeste estávamos vendo o início de algo muito maior que estava por vir. “Pai/ Afasta de mim a biqueira, pai/ Afasta de mim as biate, pai/ Afasta de mim a coquêine, pai/ Pois na quebrada escorre sangue”, versão que o paulistano, grajauense e que ainda era chamado de Criolo Doido fez da música “Cálice”, de Chico Buarque.

Após essa versão ser cantada pelo próprio Chico em um show em Belo Horizonte, em novembro de 2011, o rapper que estava na cena periférica desde 1989 caiu nas graças dos medalhões da MPB, e vimos seu rap agressivo se tornar mais calmo e lento, começando por “Não Existe Amor em SP”, música do disco “Nó na Orelha”, desse mesmo ano.

Já do outro lado de São Paulo surgia com rimas pesadas e políticas o futuro porta-voz de toda uma geração de negros e periféricos no Brasil, Leandro Roque de Oliveira, ou Emicida, nome que em “quebradin” significa “Enquanto Minha Imaginação Compuser Insanidades Domino a Arte” —duvido que você sabia dessa.

Foi em 2011 que conhecemos seu EP “Doozicabraba e a Revolução Silenciosa” e a música que virou hit e tema de comerciais, “Zica Vai Lá”.

Um ano se passou, e agora você provavelmente está no site WebMotors vendo o valor de um Camaro Amarelo. Sim, o ano é 2012, e na festa de fim de ano da firma estão todos cantando aos berros: “Agora eu fiquei doce igual caramelo/ Tô tirando onda de Camaro amarelo”, hit da dupla mato-grossense Munhoz e Mariano.

É o ano também em 
que a rainha do tecnomelody paraense, Gabi Amarantos, ganha o Brasil com “Ex Mai Love” e chama a atenção para o ritmo que mais 
bomba no Norte do Brasil.

Ainda em 2012, com músicas feitas para festas de aparelhagem, a banda Gangue do Eletro ganha o Prêmio Multishow na categoria de melhor show e aparece no ano seguinte com seu primeiro álbum, que batia de frente com o preconceito de que as festas de tecnobrega no Pará são frequentadas por traficantes e arruaceiros.

Já 2014 foi marcado pelo surgimento de grandes nomes da música nacional —e que rufem os tambores! A começar por ele, o brasiliense de um metro e meio de altura e rei do eletrofunk, o gigante Edy Lemondy. Como assim você não se lembra de “Tuts, tuts, tuts, tuts, tuts, tuts, quero ver/ Hoje eu fico com a outra pensando em você”?

Além da majestade, vemos a ascensão e consolidação da menina Larissa, vulgo Anitta para os mais íntimos, com “Show das Poderosas”, do álbum de 2013 que leva o mesmo nome. E, recém-chegada, temos a primeira lista de estatísticas do Spotify. O serviço de música apontava “Summer”, de Calvin Harris, como a mais ouvida no ano.

Tivemos também uma das melhores histórias do showbiz brasileiro. Emicida, em entrevista ao programa “Histórias do Rap Nacional”, disse que Kanye West foi esnobado pelo músico Márcio Victor, da banda baiana Psirico.

A história foi assim: o rapper americano teria ficado encantado com o som do Psirico e pediu para gravar com Márcio Victor, vocalista da banda.

“Ele [Kanye West] chapou no Psirico. Pirou no Márcio Victor e queria que o Márcio gravasse com ele de qualquer forma. O Márcio Victor disse que não tinha data para gravar com ele. Eu vi, ninguém falou! Ele disse para o Márcio: ‘Oh, vamos para o meu estúdio amanhã’? Porque o Kanye West ia embora na segunda, isso era no meio do final de semana”, contou Emicida. Sabe o que o Márcio Victor tinha agendado? Uma gravação no programa do Faustão.

Dois anos depois, Kanye West briga com Jay-Z, põe o boné vermelho com a frase “Make America Great Again” em apoio a Donald Trump e vira cantor gospel. Aparentemente a recusa do Márcio Victor foi traumática para ele.

Até então com 50 milhões (hoje 250 milhões) de visualizações no YouTube e disputando a primeira posição no Spotify durante meses em 2015 com Justin Bieber, “Baile de Favela” saiu da periferia de Jova Rural, em São Paulo, para o mundo e definiu como seria a cultura dos bailes funks paulistas.

Já em Curitiba, só se ouvia “Ai como Eu Tô Bandida!” —era a Mc Mayara, que estourava com o seu primeiro hit no eletrofunk.

Simultaneamente, em Vitória da Conquista (BA), o Rei da Cacimbinha fazia sucesso com a música “Pop 100”. Se você for torcedor do São Paulo talvez se lembre dele pelo hit “A Muriçoca, Soca, Soca”, forró elétrico que virou meme em 2015, quando Muricy Ramalho era treinador do tricolor.

Em um rolê bem aleatório, aparece em 2016 o ex-jogador Ronaldinho Gaúcho no palco com o já consagrado no sertanejo Wesley Safadão cantando “Meus amigos, voltei, eu estava ficando doido/ Bora beber que eu estou solteiro de novo”, para o disco ao vivo do cantor cearense. Caso você tenha assistido ao clipe dessa música, deve ter percebido que a opção “desver” ainda não foi inventada.

Em contrapartida, aparece com mais voz um movimento identitário nesse mesmo ritmo, o feminejo. Cena que toma força com a música “50 Reais”, da cantora Naiara Azevedo, em um “feat.” com Maiara e Maraisa, além do disco ao vivo “Bar das Coleguinhas”, de Simone e Simaria, e o primeiro álbum de Marilia Mendonça.

Já em 2017 a moda é dançar com uma mão na barriga e a outra na testa. O ritmo batidão romântico cresce com o sucesso “Amor Falso”, do cantor Aldair Playboy, que foi gravado, regravado e re-regravado em praticamente todos os ritmos naquele ano.

E foi nesse momento que o mundo teve o prazer de conhecer a maior cantora maranhense de todos os tempos, Pablo Vittar, com o hit “K.O”. A partir dali, os hits dos carnavais tinham nova dona, e o Brasil, que estava ficando cada vez mais conservador nos costumes, rendia-se a uma drag como rainha do pop nacional.

“Vá pro Inferno com seu Amor” está sendo cantado aos berros em qualquer forró de esquina, seja em 
São Paulo ou em Quebrangulo, nas Alagoas, terra do cantor Mano Walter, autor da música “Não Deixo Não”. Além do Mano, 2018 é o ano em que surge o ritmo 
que na vigilância sanitária seria chamado de “contaminação cruzada”, o funknejo.

Liderados pelo carioca Denis DJ, os MCs de funk se juntaram a duplas sertanejas e misturaram música eletrônica, funk, sertanejo e que mais o DJ da vez pudesse colocar na busca da próxima novidade.

Liderados pelo carioca Denis DJ, os MCs de funk se juntaram a duplas sertanejas e misturaram música eletrônica, funk, sertanejo e que mais o DJ da vez pudesse colocar na busca da próxima novidade.

A canção ficou tão famosa que o rapper Drake, em uma passagem pelo Brasil, juntou-se ao funkeiro para um remix da música “Ela É do Tipo”. Sim, ouvimos Drake traduzir “Vai, rebola pro pai” para “Try, you won’t even try”.

Tivemos também o bregafunk entre as músicas mais tocadas no ano, com 
direito a rixa nas redes sociais entre nordestinos e sulistas em que nós, do sul 
do país, fomos acusados de estar estragando a coreografia —eles estavam certos.​

Enfim chegamos a 2020 e, claro, além do funk, de muito sertanejo e de gringo roubando nossos ritmos, concluímos com os reis, digo, Barões da Pisadinha. Respeitando a quarentena ou não você deve ter ouvido essa dupla baiana de forró eletrônico pelo menos uma vez, seja em algum programa da TV Record ou no comercial da Magazine Luiza.

O que esperar do futuro? Como a mãe Dinah morreu em 2014, não sabemos, mas uma coisa é certa: teremos a periferia como sempre ditando a moda cultural do momento.​

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