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Lucas de Abreu Maia

Diferentes em quase tudo, Bolsonaro e Macron compartilham negação do racismo estrutural

Brasileiros e franceses têm ido às ruas reclamar da discriminação policial contra negros

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Lucas de Abreu Maia

Cientista político, foi pesquisador visitante no Massachussets Institute of Technology (MIT) e é doutorando na Universidade da Califórnia San Diego.

Países, como pessoas, costumam se autoenganar. Mentimos para nós mesmos a fim de nos convencer de que somos melhores do que de fato somos. Essa relutância em se encarar no espelho frequentemente tenta esconder algumas das nossas piores características: o racismo, o elitismo, o egoísmo, a indiferença.

Daí que nosso presidente e seu vice ainda insistem em fingir que o Brasil é uma democracia racial. Gostam de pintar o contraste com os EUA, onde a segregação entre negros e brancos foi por mais de meio século prevista em lei, para dizer que nós, ao menos, não somos tão maus assim. Somos miscigenados, dizem eles, como se essa miscigenação não fosse fruto do estupro perpetrado por homens brancos em mulheres negras e indígenas.

Manifestante segura bandeira francesa durante protesto contra violência policial em Paris - Alain Jocard - 28.nov.20/AFP

Mas não sofremos desse mal sozinhos. O presidente da França, Emmanuel Macron, tem usado o atentado ao professor Samuel Paty em outubro, cometido por extremistas islâmicos, para abraçar um discurso islamofóbico muito mais próximo da extrema direita de Marine Le Pen que do centro político que ele diz ocupar.

Acusado de fomentar o racismo, Macron negou que isso sequer exista no seu país. Deu-se ao trabalho de ligar para o colunista de mídia do New York Times, Ben Smith, para queixar-se de que a agenda antirracista seria uma imposição anglo-saxã. Segundo ele, Estados Unidos e Reino Unido tentam exportar o seu multiculturalismo para a pacificada França, onde imperaria o universalismo.

O discurso já virou até caricato: aqui, a gente não vê cor. É irônico que os presidentes da França e do Brasil, que vivem às turras, tenham discursos tão parecidos quando o assunto é racismo.

Lá e cá, a violência de forças de segurança contra negros têm levado os cidadãos às ruas para protestar contra a discriminação racial. O espancamento de um homem negro por policiais em Paris levou a uma série de protestos que deve fazer com que o país reveja uma opressiva nova lei de segurança nacional, que, entre outros descalabros, pretendia proibir a filmagem de policiais em exercício. A realidade sempre se impõe às narrativas, por mais reconfortante que a fantasia seja.

Não se trata, claro, de ser condescendente com o terrorismo islâmico. Há, sim, vertentes violentas do islã que têm de ser banidas de qualquer sociedade civilizada. Há ainda o fato de que religião não é raça ou etnia, embora vários sociólogos e cientistas políticos argumentem que os mesmos mecanismos por trás do racismo levam também à discriminação religiosa.

Macron ignora que a suposta laicidade do Estado francês é fundamentada no catolicismo histórico daquele país. Toda a cultura francesa, da comida à música, é baseada em tradições de uma religião. Ao impor aos imigrantes muçulmanos que escondam a própria fé, o que a França faz, na verdade, é impor as tradições cristãs a quem não as compartilha.

Que universalismo francês é esse? Para quem ele vale? É ótimo que a França insista em integrar os imigrantes que recebe. Ocorre que populações negras, em sua maioria muçulmanas, continuam excluídas do mercado de trabalho e têm menor renda e expectativa de vida que franceses brancos.

Qualquer semelhança com a realidade dos negros no Brasil não é mera coincidência. É o preço que pagamos pelo nosso autoengano.

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