Descrição de chapéu Armênia

Em guerra entre Armênia e Azerbaijão, a única resolvida no ano, Inga perdeu tudo pela 2ª vez

Armênia, expulsa de Baku em 2003, agora vê sua cidade ocupada por forças azeris

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São Paulo

"Para mim, foi como um raio no céu azul. De repente, estávamos em guerra. E eu perdi tudo de novo", relata, lágrimas escorrendo, Inga Alexanyan.

A história dessa armênia de 35 anos se confunde com as desgraças que se abateram no Cáucaso desde a dissolução da União Soviética em 1991.

A professora Inga Alexanyan, deslocada na guerra em Nagorno-Karabakh, durante conversa por vídeo
A professora Inga Alexanyan, deslocada na guerra em Nagorno-Karabakh, durante conversa por vídeo - Igor Gielow/Folhapress

Uma das mais longevas, a disputa entre Azerbaijão e Armênia, chegou a uma tentativa de fim neste ano, quando a ofensiva de Baku tornou a posição militar de Ierevan insustentável em torno do encrave armênio de Nagorno-Karabakh. Sob os auspícios do russo Vladimir Putin, um acordo de paz precário foi assinado.

Para Inga, professora de uma escola primária de Shushi, o fato de este ter sido o único dos 33 grandes conflitos militares listados anualmente pelo IISS (Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, na sigla inglesa) a ter chegado a um fim presumido não representa um alívio.

Ao contrário. "No dia 27 de setembro, quando a ofensiva azeri começou, eu tinha voltado de uma reunião escolar. Começaram a soar alarmes de ataque aéreo, e passamos dois dias no porão de casa", contou ela. O plural da frase remete aos filhos: Marian, 15, Daniel, 13 e Abel, 8.

O marido, Armen, 40, foi para a linha de frente. "Ele perdeu o pé direito ao pisar numa mina em 2016, mas seguiu com os militares de Artsakh [nome armênio para Karabakh]", continuou Inga. "No começo, nossas forças abateram drones, mas a situação piorou e fomos para o bunker da universidade."

O campus até então era um sinal de renascimento e resistência para ela. O conflito no Cáucaso já havia marcado sua família, que morava na capital do território inimigo, Baku.

Na colcha de retalhos étnica de toda a região, não era algo incomum. Mas a guerra entre azeris e armênios pelo controle de Nagorno-Karabakh, de 1992 a 1994, gerou cicatrizes.

Suspensa por cessar-fogo, a vantagem era de Ierevan: manteve o território e ocupou sete distritos à sua volta, expulsando 620 mil moradores e promovendo a volta de armênios a regiões de onde haviam sido expulsos séculos atrás.

Em 1988, começou uma série de pogroms contra armênios no Azerbaijão. O padrasto de Inga foi morto num deles e, em 2003, a família desistiu e mudou-se para Shushi, cidade-símbolo da herança cultural armênia em Karabakh.

Havia auxílio oficial, na casa de US$ 150 (R$ 760) por cabeça, para quem se mudava. "Começamos tudo do zero, mas a infraestrutura local era muito boa", afirmou.

A universidade lhe deu dois diplomas, em educação infantil e novas tecnologias de comunicação. Passou a lecionar em escolas primárias, matemática principalmente. "E lá casei com Armen", completa.

Essa reminiscência doce foi apagada após cinco dias no bunker. "Não dava mais, fomos embora. Não queria minhas crianças com medo do barulho das bombas", disse, no caso para a vila de Noramarg, a 300 km dali, na fronteira da Armênia com a Turquia.

"Foi um choque. Nós nunca achamos que Shushi seria atacada. Nos sentíamos seguros lá. Quando eu saí de casa, tinha tanta certeza de que voltaríamos que lavei as roupas, passei ferro e fiz uma faxina. Agora nunca mais vou voltar."

Novembro chegou, com o frio típico da região, próxima do icônico monte Ararat. Inga resolveu buscar refúgio na capital, Ierevan, alugando um pequeno apartamento com outras três famílias desalojadas.

"Eu não tenho o que fazer. O serviço social nos traz comida, mas estou vivendo das minhas economias, que são poucas", afirmou, tentando conter o choro numa ligação de vídeo intermediada e traduzida pela União Geral Armênia de Beneficência, realizada na quinta (17).

O acordo de paz, uma capitulação aos olhos de armênios que vão às ruas protestar contra o premiê Nikol Pashiniyan desde então, foi assinado na madrugada de 10 de novembro. Inga não condena o líder. "Não havia muita alternativa depois de 44 dias de guerra. Só que ele deveria ter assinado no segundo dia dela", disse.

Com efeito, no começo do conflito a Armênia não parecia estar tão fragilizada. Ao fim, teve de desocupar os sete distritos em torno de Nagorno-Karabakh e perdeu cerca de 30% da área, tomada pelos azeris —Shushi inclusive.

Morreram oficialmente 2.783 militares e 94 civis do lado azeri, e 2.966 fardados e 55 moradores armênios. Os números são, segundo observadores, talvez bem mais altos. Inga perdeu dois primos de seu marido e o filho de um deles, mas não tem notícias de seus conhecidos com constância desde que deixou Shushi.

Armen ficou em Karabakh. "Ele segue com a Força de Defesa. Acho que ele não teve coragem de ir embora", disse ela, que vê a região como um peão de forças maiores que atuam no Cáucaso.

"Todos, a Rússia, a Turquia, o Irã, estão buscando sua própria agenda. Felizmente não virou um conflito maior, porque Artsakh seria destruída", diz Inga, acerca dos atores principais na área desde que aquilo era uma confluência de impérios.

O risco era grande. Os russos são aliados da Armênia e mantêm uma base militar grande no país. A Turquia foi a fiadora da guerra de Baku, fornecendo armas e apoio. E o Irã só observava, dada a grande população azeri étnica em seu território.

Ao fim, o choque foi evitado e Moscou saiu com os créditos e o ônus de ser a pacificadora, com o compromisso de manter 2.000 soldados por cinco anos, renováveis por outra meia década, garantindo as fronteiras e a rota que liga Karabakh à Armênia, assim como a estrada do encrave azeri de Nakhchevan para o Azerbaijão.

Na lista do IISS, um dos principais centros de estudos geopolíticos do mundo, Nagorno-Karabakh era o principal conflito herdado do desmembramento da União Soviética, da qual Armênia e Azerbaijão faziam parte.

Comboio da força de paz russa passa por corpo de soldado armênio perto de Shushi
Comboio da força de paz russa passa por corpo de soldado armênio perto de Shushi - 13.nov.2020/Reuters

A relação dos conflitos de 2019-2020 parece arbitrária, já que guerras de gangues no Brasil e no México figuram entre eles, mas há critérios objetivos: a existência de violência de forma continuada por pelo menos três meses, algo que pode ser relaxado quando o conflito é entre Estados, por exemplo.

Os conflitos podem ser internos, internacionais ou internacionalizados —o caso de Nagorno-Karabakh, de forma indireta. Dos 33 listados, em 21 há mais atores não-estatais do que estatais envolvidos, mostrando a complexidade do quadro.

No Cáucaso, histórias como a de Inga mostram a dificuldade de se romper o eterno retorno das tensões nacionalistas e sectárias. "Eu entendo que há esse ciclo, mas não vejo como ser possível voltar para Shushi. Seria enviar cordeiros para viver com lobos, eles são inimigos muito insidiosos e cruéis", afirmou.

Sobre o turcos, nem é preciso dizer: o genocídio que Ancara não admite que o Império Otomano promoveu em 1915 é chaga incurável na relação inexistente entre os dois países.

Assim, Inga repete a melancólica história de azeris antes dela e de armênios antes deles naquela terra de beleza bucólica, numa disputa milenar pelo direito de ocupá-la que se vê em tantos outros lugares —Israel e Palestina, Caxemira, Curdistão.

Correram o mundo imagens de famílias armênias desenterrando parentes para levar os corpos consigo antes da chegada dos azeris após o acordo de paz.

Sem saber qual será seu próximo destino, a única certeza da jovem professora é de que coabitação não é uma alternativa, em especial depois da guerra deste ano. "Não temos confiança neles", resume a ex-moradora de Shusha, como a sua cidade é chamada agora pelos seus novos donos.

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