Descrição de chapéu Retrospectiva da década STF

Em transe, Brasil dos anos 2010 teve protestos, impeachment, Lava Jato e Bolsonaro

Sequência de eventos iniciada em junho de 2013 destapou sentimento das ruas que ajudou a eleger atual presidente

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São Paulo

Em 6 de junho de 2013, algumas centenas de manifestantes do Movimento Passe Livre marcharam da praça Ramos até a avenida Paulista, em São Paulo, no primeiro de uma série de protestos contra o aumento da tarifa de ônibus.

Em 1º de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro tomou posse na Presidência da República, tendo em sua equipe, como ministro da Justiça, o ex-juiz responsável pela Lava Jato, Sergio Moro.

Seria exagero parafrasear o historiador Eric Hobsbawm, morto em 2012, e dizer que vivemos a “breve década de 10”, compreendida neste período de pouco mais de cinco anos e meio. Basta mencionar que a pandemia, um dos grandes eventos dos últimos tempos, ocorreu depois desse intervalo.

Não seria fora de propósito, no entanto, dizer que há uma sequência de fatos que vai das grandes manifestações pelo passe livre até a chegada ao poder do capitão reformado.

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O presidente Jair Bolsonaro e a primeira-dama, Michelle, na cerimônia de posse - 01.jan.2019/Pedro Ladeira/Folhapress

No meio dela, ocorreu a maior investigação da história do Brasil, a ascensão da nova direita, o impeachment de uma presidente, o quase afastamento de outro, a explosão da polarização nas redes sociais e a eleição inesperada de um político de discurso agressivamente conservador.

O ritmo frenético vivido pelo país em razão desses eventos definiu grande parte da década e tornou a sociedade brasileira bastante diferente ao final dela.

O processo histórico nunca é linear, e os fatos jamais se encaixam perfeitamente como um vagão que puxa o outro.

Mas é difícil imaginar o caldo social que elegeu Bolsonaro fermentando sem a mudança sísmica provocada pela Lava Jato, pelo desgaste da política e pelas sucessivas ondas de indignação popular que marcaram os anos 10.

As ligações entre os vagões deste processo foram nítidas, e nem sempre percebidas de imediato por quem as vivia. A imprensa não ficou imune a isso.

Em 13 de julho de 2013, uma minúscula nota de 18 linhas em um pé de página na Folha noticiou um dos fatos que se provariam mais relevantes, e com maiores consequências, de toda a década: a aprovação, pelo Senado, de uma nova lei para tipificar e combater organizações criminosas.

A passagem da legislação era filha direta das manifestações de junho daquele ano.

O que havia começado como um inocente protesto contra aumento de tarifas metamorfoseou-se em questão de dias em uma catarse cívica que levou milhões às ruas.

Exigia-se melhores serviços públicos, combate à corrupção e à criminalidade e justiça social, entre outros temas.

Surpreendidos, os chefes dos três Poderes buscaram oferecer respostas rápidas e de impacto, e o endurecimento da legislação anticrime foi uma delas.

Em 2 de agosto de 2013, a presidente Dilma Rousseff sancionava a lei 12.850, que não tratava apenas de organizações criminosas.

Como um aspecto que à época foi tido como secundário, também regulamentou o instituto da “colaboração premiada”, que era utilizado de forma esporádica por juízes e promotores desde a década anterior, mas sem uniformidade.

Agora, esta lei nascida das manifestações de junho dava segurança jurídica ao instrumento. Os efeitos práticos desta mudança não tardariam a surgir.

Em 17 de março de 2014, uma operação da Polícia Federal teve como alvo uma casa de câmbio situada num posto de combustíveis em Brasília.

Começava a Lava Jato, que em poucos meses evoluiu de uma ação direcionada a desvendar uma rede de doleiros para uma operação ambiciosa com o objetivo de desarticular um esquema de pagamento de propinas, superfaturamento de obras e financiamento político com centro na maior empresa do país, a Petrobras.

O combustível dos investigadores, baseados em Curitiba, eram as delações premiadas. A primeira foi firmada em setembro de 2014, com o ex-diretor da estatal Paulo Roberto Costa, cerca de um ano após a aprovação da lei que formalizou a existência do instrumento.

Nos anos seguintes, dezenas se seguiriam, que por sua vez levavam a outras, num processo de realimentação sem término em vista.

Ou, como definiu em linguagem popular o ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, morto num acidente aéreo em janeiro de 2017, “a gente puxa a pena e vem uma galinha”.

Jovens e antenados ao que havia de mais moderno em técnicas de investigação no mundo, os responsáveis pela linha de frente da Lava Jato agiam sob influência do “espírito de 2013”.

Era o sentimento messiânico gritado nas ruas, o imperativo de “passar o Brasil a limpo”, que os movia.
À frente do grupo de procuradores, embora tecnicamente não devesse se misturar a eles, estava o juiz Sergio Moro, um especialista em lavagem de dinheiro. Com o decorrer da década, a figura a princípio circunspecta do magistrado de perfil técnico deu lugar a um ator político assumido.

A operação provocou ondas de choque ao prender os maiores empreiteiros do país e golpeou em cheio a classe política, atingindo sobretudo o PT, partido que estava no poder.

Principal liderança da legenda, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não seria poupado. Condenado por corrupção, passou um ano e meio na sede da Polícia Federal em Curitiba, até ser solto por causa da mudança do entendimento sobre a prisão após condenação em segunda instância.

Filha de junho de 2013, a Lava Jato pariu uma onda de amarelo que tomou o país em 2015 e 2016.
Suas revelações não foram suficientes para impedir a reeleição de Dilma, mas acabariam dando uma contribuição fundamental para seu afastamento.

O efeito mais profundo, no entanto, foi ajudar a destravar um sentimento adormecido há décadas na sociedade brasileira e que apenas aguardava um gatilho para aflorar: o conservadorismo político.

A chamada “nova direita” invadiu as ruas das grandes cidades em megamanifestações que não eram vistas desde a campanha das Diretas Já, na fase final da ditadura militar.

Ironicamente, uma fração minoritária, mas barulhenta desses manifestantes era de saudosistas assumidos da ditadura.

A eles se somavam liberais que propagandeavam o Estado mínimo e grupos sociais emergentes como evangélicos, produtores rurais, defensores do endurecimento penal e do armamento, além de, obviamente, os lavajatistas.

Ao mesmo tempo, o antipetismo e a repulsa à agenda progressista de costumes e pró-minorias atraiu vastos setores da classe média.

Com velocidade assustadora, o pêndulo da política mudou de direção, e surgiu um nicho a ser explorado eleitoralmente por quem se dispusesse a levar adiantes as bandeiras empunhadas nas ruas.

Deputado de baixo clero durante 28 anos, saudosista da ditadura e com impecáveis credenciais antiesquerdistas, Jair Bolsonaro era quem estava mais bem posicionado para canalizar a nova força conservadora.

Habilmente, transformou o que seria fragilidade política, a falta de estrutura partidária, em trunfo.
Com uma bem montada estrutura de comunicação baseada em redes sociais, e no uso irregular de disparos pelo WhatsApp, credenciou-se como alguém de fora do sistema, não obstante sua longa trajetória parlamentar.

Mudar a política e ser implacável contra a corrução, slogans de 2013 e das manifestações contra Dilma, estavam em sua campanha eleitoral.

A nomeação de Moro para o Ministério da Justiça escancarou a dívida que sua vitória tinha com a Operação Lava Jato.

Ao discursar para a multidão em Brasília no dia de sua posse como presidente, Bolsonaro fez um gesto imortalizado em uma imagem.

Ele aponta para si mesmo, com a faixa presidencial, em sinal de espanto por ali estar. E dificilmente estaria, caso um sentimento represado não tivesse tomado as ruas alguns anos antes.

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