Descrição de chapéu Retrospectiva da década

Entraremos a década nova ainda aprendendo a lidar com a Covid-19

Se há algo a celebrar é que, em tempo recorde, foram produzidos vacinas e protocolos de segurança eficazes

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São Paulo

Era 31 de dezembro de 2019 quando a repartição da Organização Mundial da Saúde na China recebeu informações a respeito de casos de uma pneumonia de causa desconhecida na cidade de Wuhan. Em 3 de janeiro, os registros da doença pulmonar misteriosa já eram 44, todos ligados a um mercado da cidade.

A primeira vítima, um homem de 61 anos, morreria uma semana depois. A Tailândia relataria casos no dia 13. Mais uma semana e a doença estaria no Japão, na Coreia do Sul, nos Estados Unidos. Antes do fim do mês, com mais de 10 mil casos e 200 mortos no mundo, seria declarada emergência global.

O parágrafo que inicia este texto está na primeira nota emitida pela OMS sobre a pandemia do novo coronavírus, em 5 de janeiro deste ano atípico.

“O agente causador ainda não foi identificado nem confirmado”, seguia o alerta. “A OMS solicitou mais informações das autoridades nacionais para avaliar os riscos.”

Neste final de 2020, somente oito países-ilha e os inescrutáveis Turcomenistão e Coreia do Norte, que censuram informações, não relataram nenhum caso da doença que seria batizada como Covid-19 apenas em fevereiro.

No Brasil, não há município sem casos, e a imensa maioria deles conta seus mortos. Alguns, como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e outras seis capitais, aos milhares. Neste final de 2020, nos aproximamos da inacreditável marca dos 200 mil mortos.

Com quase 80 milhões de infectados no mundo –número subestimado, entre testes mal feitos e omissões–, a doença marcha, acelerada, com um rastro de mais de um milhão e setecentos mil cadáveres. Um milhão e setecentos mil cadáveres.

Nenhum artigo, nenhuma projeção, nenhuma previsão que antecedeu 2020 deu conta de uma tragédia dessa monta, que fecha com luto e medo a segunda década de um milênio que começou com bombas e sangue.

Os historiadores do futuro terão de decidir se a era em que vivem começou com os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 ou com a pandemia do novo coronavírus, dois eventos definitivos, transformadores de culturas, sociedades e economias. Nas duas vezes, estávamos igualmente despreparados.

Se o choque do primeiro foi instantâneo, o do segundo se instalou sorrateiramente, e ainda não saímos dele. Mesmo quando se avizinha a vacina capaz de frear o vírus (cura ainda não há), a quantidade de incertezas é tão insidiosa quanto a doença em si.

Vacinados, poderemos circular como antes? Continuaremos a usar máscaras e a fugir de multidões, ao menos os mais conscientes entre nós, sem saber se o vírus continuará ou não sendo transmitido, ainda que enfraquecido?

Margaret Keenan, 90, recebendo a vacina da Pfizer/BioNtech contra a Covid-19 no braço esquerdo
Margaret Keenan, 90, foi a primeira paciente no Reino Unido a receber a vacina da Pfizer/BioNtech contra a Covid-19 - 8.dez.2020/Jacob King/Pool via Reuters

Os hábitos que adquirimos, as mudanças no trabalho e nas relações sociais, os temores instintivos, perseverarão na década nova? O luto suprimido, as imagens de UTIs lotadas e de mortos sendo retirados das casas, o desespero dos doentes que se afogam no ar pararão de nos assombrar?

As sequelas dos ex-pacientes irão embora? Deixarão de nos acompanhar as ausências? As faltas trazidas pelo confinamento prolongado: de encontro, de estudo, de dinheiro, de exercício, de certezas; elas se dissipam?

Previsões sobre a atual pandemia ao longo do ano se mostraram descartáveis, e a velocidade do medo e das dúvidas superou a da ciência e a da sensatez em muito.

Mas será triste, se não for fatal, se o que vivemos neste 2020 desgraçado for recolhido ao lugar da anedota, arriscando repeti-lo nesta mesma geração. Se o cansaço, por compreensível que seja, ganhar do bom senso, e a ciência e a saúde forem postas em segundo plano.

Se há algo a celebrar neste final lamentável de uma década insólita é que em tempo recorde foram produzidas vacinas e traçados protocolos de segurança eficazes para uma doença que, um ano atrás, não existia.

Não há, contudo, panaceia. Entraremos a década nova ainda aprendendo a lidar com a Covid-19, buscando sua cura ou sua mitigação.

Até lá, muita gente vai morrer sem ar, na cama de UTI, na sala de casa, no corredor do hospital. O estrago deste 2020 ainda está sendo contabilizado, e não vai sumir com uma sacudidela nem promessas mágicas. Já há casos documentados de reinfecção, e é preciso lidar com a possibilidade de o vírus circular entre nós durante anos.

Essa consciência é fundamental para que os que ainda vão morrer de Covid sejam menos numerosos do que aqueles que já morreram dela, e não pode ser esmagada por afirmações que promovem crenças e vontades em detrimento da pesquisa científica que conjuga anos de conhecimento.

Ainda que metade dos brasileiros, como mostrou pesquisa feita pelo Datafolha neste dezembro trágico, isente totalmente o presidente Jair Bolsonaro de culpa, suas ações e as daqueles que o seguiram não podem passar incólumes.

Seu combate ao uso de máscaras, sua incitação a aglomerações, sua promoção insistente de remédios sem lastro científico e, sobretudo, sua negligência em planejar a reação à pandemia ou em permitir a compra de insumos básicos para controlar a doença custaram vidas. Será preciso se ater à lição.

Duzentos mil mortos não podem, em hipótese nenhuma, ser uma inevitabilidade.

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