Mais da metade dos países do mundo tomou medidas para conter a pandemia de Covid-19 que podem trazer danos à democracia e aos direitos humanos, como abrir caminho para a vigilância aos cidadãos, a perseguição a opositores e o aumento do poder de militares.
A conclusão é do levantamento The Global State of Democracy, elaborado pela ONG sueca Idea (Instituto para a Democracia e Assistência Eleitoral), divulgado no início de dezembro.
Até novembro, 99 dos 162 países monitorados adotaram medidas que podem ameaçar direitos, o que representa 61% do total pesquisado. A ONU reconhece a existência de 193 países no planeta.
Para o Idea, essas determinações dos governos trazem preocupações por serem desproporcionais, ilegais, de prazo indefinido ou desnecessárias, e por abrirem espaço a outros tipos de violação.
O temor é de que medidas assim abram caminho para outros gestos autoritários no futuro próximo, como a espionagem de cidadãos, a perseguição a opositores e o cerceamento à liberdade de expressão.
O levantamento aponta casos de detenção e a expulsão de jornalistas que cobriam a pandemia e a censura a médicos e cientistas, impedidos de divulgar dados sobre a situação real da crise sanitária.
A adoção de medidas consideradas preocupantes foi mais comum em regimes autoritários —90% deles o fizeram, contra 46% dos países avaliados como democráticos.
O Idea aponta que a pandemia ajudou a aumentar o nível de autoritarismo pelo mundo em um nível que não era visto desde os anos 1970.
Entre os países com mais ações questionáveis estão Índia, Malásia e Iraque, locais em que a estabilidade da democracia já estava sob dúvida havia alguns anos.
A democracia no Brasil também foi considerada "em retrocesso". Fatores como os ataques à liberdade de imprensa, muitos dos quais feitos pelo presidente Jair Bolsonaro, contribuem para isso.
O Brasil é citado como exemplo de governo que buscou dificultar o acesso aos dados da Covid-19 e que deu a militares a função de comandar a estratégia nacional contra a doença.
"Esse papel proeminente na pandemia pode começar a legitimar uma maior presença dos militares na vida pública, mesmo após o fim da pandemia, e pode minar a democratização em regiões com histórico de governos autocráticos e militares", diz o estudo.
O Brasil foi comandado por uma ditadura militar de 1964 a 1985.
Os pesquisadores recomendam que a atuação dos militares tenha escopo restrito e que haja garantias de que eles agem sob comando civil.
O Brasil também foi incluído em uma relação de países onde o Legislativo conseguiu contrabalançar o poder do Executivo, como quando o Congresso derrubou vetos de Bolsonaro.
Ao menos 118 países ainda tinham restrições de circulação no final de novembro. Ao longo do ano, ao menos 96 países decretaram "lockdowns", vetos rígidos a deslocamentos , com raras exceções. Os bloqueios, no entanto, não impediram os protestos de rua, registrados em 80% dos países pesquisados.
O estudo aponta ainda que 93 eleições previstas para 2020, em diversos países, foram adiadas, enquanto 92 foram feitas no prazo. No entanto, 23% dos pleitos programados ainda não aconteceram.
Para o Idea, os complexos debates sobre adiar ou não os pleitos tiveram efeitos negativos na imagem das democracias, ao abrir espaço para boicotes e críticas sobre a legitimidade dessas votações em condições restritas. O medo de contágio gerou, ainda, queda no comparecimento às urnas, o que também abriu espaço para contestações sobre a legitimidade dos resultados.
Por outro lado, o estudo aponta que vários países avançaram no uso de votos a distância, o que pode abrir espaço para mais participação democrática no futuro. A aceleração na digitalização de atividades, como as reuniões virtuais de parlamentares e de juízes, também foram apontados como pontos positivos.
A pandemia, porém, também foi usada para perseguir opositores. Em Bangladesh e no Camboja, rivais dos partidos no poder foram presos sob acusação de espalhar mentiras sobre o coronavírus. Em Camarões, opositores foram detidos ao distribuir materiais de saúde.
O levantamento avalia que a Argentina e o México passaram a ter sinais de erosão da democracia após a pandemia, sendo que não os tinham antes.
A Argentina é citada por ter decretado um dos "lockdowns" mais longos do mundo, porque o Executivo tomou decisões orçamentárias no período sem passar pelo Congresso e porque o presidente Alberto Fernández propôs uma reforma do Judiciário no meio da pandemia, apontada como uma tentativa de enfraquecer a independência dos juízes.
O estudo mostra que a pandemia gerou casos de corrupção em ao menos 43 países, com maior presença nas Américas, e que os governos, de modo geral, tem feito pouco para combater o problema.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.