Estudo diz que 61% dos países adotaram medidas contra pandemia que ameaçam a democracia

Temor é que aumento do poder dos governos seja usado para combater opositores e vigiar população

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São Paulo

Mais da metade dos países do mundo tomou medidas para conter a pandemia de Covid-19 que podem trazer danos à democracia e aos direitos humanos, como abrir caminho para a vigilância aos cidadãos, a perseguição a opositores e o aumento do poder de militares.

A conclusão é do levantamento The Global State of Democracy, elaborado pela ONG sueca Idea (Instituto para a Democracia e Assistência Eleitoral), divulgado no início de dezembro.

Até novembro, 99 dos 162 países monitorados adotaram medidas que podem ameaçar direitos, o que representa 61% do total pesquisado. A ONU reconhece a existência de 193 países no planeta.

Manifestante pró-democracia abraça agente de segurança durante protesto contra o ditador de Belarus, Aleksandr Lukachenko
Manifestante pró-democracia abraça agente de segurança durante protesto contra o ditador da Belarus, Aleksandr Lukachenko - Vasily Fedosenko - 14.ago.20/Reuters

Para o Idea, essas determinações dos governos trazem preocupações por serem desproporcionais, ilegais, de prazo indefinido ou desnecessárias, e por abrirem espaço a outros tipos de violação.

Como exemplos, o instituto cita a imposição de "lockdowns" sem base legal, a tentativa de esconder dados sobre a pandemia, a obrigatoriedade de instalar apps de rastreamento pessoal e o uso de medicamentos com eficácia questionada.

O temor é de que medidas assim abram caminho para outros gestos autoritários no futuro próximo, como a espionagem de cidadãos, a perseguição a opositores e o cerceamento à liberdade de expressão.

O levantamento aponta casos de detenção e a expulsão de jornalistas que cobriam a pandemia e a censura a médicos e cientistas, impedidos de divulgar dados sobre a situação real da crise sanitária.

A adoção de medidas consideradas preocupantes foi mais comum em regimes autoritários —90% deles o fizeram, contra 46% dos países avaliados como democráticos.

O Idea aponta que a pandemia ajudou a aumentar o nível de autoritarismo pelo mundo em um nível que não era visto desde os anos 1970.

Entre os países com mais ações questionáveis estão Índia, Malásia e Iraque, locais em que a estabilidade da democracia já estava sob dúvida havia alguns anos.

A democracia no Brasil também foi considerada "em retrocesso". Fatores como os ataques à liberdade de imprensa, muitos dos quais feitos pelo presidente Jair Bolsonaro, contribuem para isso.

O Brasil é citado como exemplo de governo que buscou dificultar o acesso aos dados da Covid-19 e que deu a militares a função de comandar a estratégia nacional contra a doença.

"Esse papel proeminente na pandemia pode começar a legitimar uma maior presença dos militares na vida pública, mesmo após o fim da pandemia, e pode minar a democratização em regiões com histórico de governos autocráticos e militares", diz o estudo.

O Brasil foi comandado por uma ditadura militar de 1964 a 1985.

Os pesquisadores recomendam que a atuação dos militares tenha escopo restrito e que haja garantias de que eles agem sob comando civil.

O Brasil também foi incluído em uma relação de países onde o Legislativo conseguiu contrabalançar o poder do Executivo, como quando o Congresso derrubou vetos de Bolsonaro.

A crise atual elevou insatisfações de longa data e fez com que cidadãos de países como Belarus, Tailândia e Quirguistão fossem às ruas exigir mudanças e maior participação democrática. Os resultados desses protestos, no entanto, ainda estão indefinidos.

Ao menos 118 países ainda tinham restrições de circulação no final de novembro. Ao longo do ano, ao menos 96 países decretaram "lockdowns", vetos rígidos a deslocamentos , com raras exceções. Os bloqueios, no entanto, não impediram os protestos de rua, registrados em 80% dos países pesquisados.

O estudo aponta ainda que 93 eleições previstas para 2020, em diversos países, foram adiadas, enquanto 92 foram feitas no prazo. No entanto, 23% dos pleitos programados ainda não aconteceram.

Para o Idea, os complexos debates sobre adiar ou não os pleitos tiveram efeitos negativos na imagem das democracias, ao abrir espaço para boicotes e críticas sobre a legitimidade dessas votações em condições restritas. O medo de contágio gerou, ainda, queda no comparecimento às urnas, o que também abriu espaço para contestações sobre a legitimidade dos resultados.

Por outro lado, o estudo aponta que vários países avançaram no uso de votos a distância, o que pode abrir espaço para mais participação democrática no futuro. A aceleração na digitalização de atividades, como as reuniões virtuais de parlamentares e de juízes, também foram apontados como pontos positivos.

A pandemia, porém, também foi usada para perseguir opositores. Em Bangladesh e no Camboja, rivais dos partidos no poder foram presos sob acusação de espalhar mentiras sobre o coronavírus. Em Camarões, opositores foram detidos ao distribuir materiais de saúde.

O levantamento avalia que a Argentina e o México passaram a ter sinais de erosão da democracia após a pandemia, sendo que não os tinham antes.

A Argentina é citada por ter decretado um dos "lockdowns" mais longos do mundo, porque o Executivo tomou decisões orçamentárias no período sem passar pelo Congresso e porque o presidente Alberto Fernández propôs uma reforma do Judiciário no meio da pandemia, apontada como uma tentativa de enfraquecer a independência dos juízes.

O estudo mostra que a pandemia gerou casos de corrupção em ao menos 43 países, com maior presença nas Américas, e que os governos, de modo geral, tem feito pouco para combater o problema.

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