Descrição de chapéu Financial Times Brexit

Frenética, negociação do brexit teve pizza de madrugada e desavenças sobre pesca e carros

Diplomatas passaram dias esmiuçando termos até a conclusão do acordo na véspera do Natal

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Jim Brunsden George Parker
Bruxelas e Londres | Financial Times

Os negociadores exaustos finalmente destravaram o acordo que definirá o futuro das relações comerciais entre o Reino Unido e a União Europeia (UE), de 660 bilhões de libras (cerca de R$ 4,6 trilhões), depois de uma série de discussões na última hora sobre direitos de pesca que representam uma pequena fração dessa quantia.

Boris Johnson segura pacote contendo peixe congelado durante discurso em evento do Partido Conservador, em 2019, antes de assumir como primeiro-ministro
Boris Johnson segura pacote contendo peixe congelado durante discurso em evento do Partido Conservador, em 2019, antes de assumir como primeiro-ministro - Tolga Akmen - 17.julho.19/AFP

Os últimos quilômetros da maratona de negociações, que começaram em março à sombra da primeira onda da pandemia de Covid-19 na Europa, foram em geral dedicados a forjar dolorosas concessões sobre cotas de pesca da UE em águas britânicas.

Contra o pano de fundo caótico da proibição de viagens causada pelo vírus, que deixou caminhões parados em filas de quilômetros e o Reino Unido isolado do continente, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, assumiram pessoalmente o controle das conversas.

As últimas horas das negociações trataram de uma fração dos atuais direitos de pesca da União Europeia, em um valor anual estimado de 650 milhões de euros (cerca de R$ 4,1 bilhões).

"As planilhas sobre pesca são ainda menos interessantes do que parecem", suspirou um membro exausto da equipe, enquanto as negociações se arrastavam além da hora do almoço na véspera do Natal. "Todos queremos ir para casa, mas o champanhe está no gelo."

Há menos de um mês, as perspectivas de um acordo pareciam muito mais sombrias. Michel Barnier, o principal negociador europeu, e seu homólogo britânico, David Frost, tinham pedido uma pausa depois de tensas conversas em Londres, dizendo a seus líderes políticos em 4 de dezembro que as negociações estavam num beco sem saída.

Enquanto Barnier e seu time chegavam à estação St. Pancras na manhã seguinte, para tomar o primeiro trem Eurostar de volta a Bruxelas, as conversas entravam num período de crise que levou as negociações à beira do colapso.

O ponto crucial naquela etapa era uma questão que havia perturbado as negociações desde o início: como satisfazer as exigências da União Europeia de um "campo de jogo nivelado" regulatório que protegeria suas empresas da concorrência desleal.

Autoridades britânicas dizem que o objetivo foi alcançado ainda em julho, depois que Barnier concordou em reestruturar as exigências europeias de maneira a retirar qualquer referência direta à regulamentação do bloco e qualquer papel do Tribunal de Justiça Europeu.

Mas os negociadores continuaram presos às questões centrais de como aplicar um acordo sobre concorrência justa e cumprir as demandas dos líderes da UE, como o presidente francês, Emmanuel Macron, de que o "campo de jogo nivelado" deveria ser duradouro.

Líderes diante do impasse

Em 5 de dezembro —um dia depois que os dois negociadores principais admitiram que as conversas estavam emperradas—, Johnson e Von der Leyen realizaram a que seria a primeira de numerosas conversas que definiriam o curso da última fase de negociações.

A UE vinha pressionando por um "mecanismo" que permitiria aos dois lados tocar o alarme se sentisse que diferenças nos regulamentos —por exemplo, uma lei ambiental— haviam colocado suas empresas em desvantagem.

Segundo a proposta, o lado prejudicado teria o direito de impor tarifas —"tarifas relâmpago" unilaterais, segundo autoridades de Downing Street— se as consultas falhassem.

Um aliado de Johnson disse que a medida teria desestabilizado as relações Reino Unido-UE durante anos, forçando os britânicos a adotar as mesmas regras de Bruxelas ou enfrentar sanções punitivas por questões tênues.

A disputa esteve no centro dos contatos entre Johnson e Von der Leyen no início de dezembro —um diálogo que levou os dois líderes a concordarem em se reunir em Bruxelas para um jantar em 9 de dezembro, numa tentativa de superar o impasse.

No entanto, qualquer esperança de um encontro direto que ajudasse a derreter o gelo em torno das negociações comerciais rapidamente se dissolveu.

No entorno estéril da sede da Comissão Europeia em Berlaymont, Von der Leyen e Johnson não encontraram um rumo. Ao lado de seus negociadores, o encontro —precedido por uma sessão de fotos desajeitada— permaneceu rigidamente formal.

No dia seguinte, o primeiro-ministro disse aos britânicos que havia "uma forte possibilidade" de que as negociações falhassem. Von der Leyen mandou uma mensagem semelhante aos líderes europeus em uma cúpula em Bruxelas.

Mas em meio à sombra e às disputas havia sinais de que os dois lados ainda desejavam urgentemente um acordo.

David Frost e Oliver Lewis, o assessor de Johnson para a Europa, passaram dias trabalhando em propostas alternativas para permitir que o Reino Unido preservasse a liberdade para definir suas regras enquanto davam à UE a tranquilidade de que poderia retaliar se as coisas se excedessem.

"Isso foi provavelmente o que mais nos agradou —foi bastante original em acordos comerciais", disse uma autoridade britânica. Seu principal parceiro nessas negociações foi Stephanie Riso, uma assessora graduada de Von der Leyen e veterana nas negociações do divórcio entre UE e Reino Unido.

"Com Steph houve uma discussão real", disse a autoridade.

Enquanto isso, Johnson se preparava para rotular o novo mecanismo de "cláusula da liberdade" para tranquilizar os deputados conservadores ansiosos de que o Reino Unido teria autonomia regulatória, mesmo que isso custasse caro em termos de acesso ao mercado europeu.

Em um breve telefonema na hora do almoço no domingo (13), Von der Leyen e Johnson diluíram a crise sobre o campo nivelado, admitindo progresso e concordando em permitir que seus negociadores continuassem conversando —montando o cenário para as frenéticas últimas semanas de negociações em Bruxelas.

Barnier disse aos embaixadores da UE no dia seguinte que o Reino Unido havia aceitado em princípio o mecanismo de campo nivelado, desde que fossem incluídas salvaguardas suficientes para que a UE não atingisse produtos britânicos com tarifas por motivos espúrios.

Da perspectiva britânica, o compromisso incluía mudanças importantes: um sistema de arbitragem, a remoção da ameaça de sanções "automáticas" e outras salvaguardas contra abusos. Mas o lado europeu sentiu que lhe dava a segurança necessária.

Os pesqueiros, porém, continuavam uma questão aparentemente insolúvel até o final. Os negociadores britânicos admitem que subestimaram a determinação da UE de manter seu direito à pesca —questão que pairou sobre as negociações até a última hora e que era de vital importância para Macron.

Ainda no início desta semana, o Reino Unido e a UE continuavam muito distantes sobre o destino dos atuais direitos de pesca do bloco em águas britânicas.

As negociações se concentraram em uma fase de transição que garantiria à frota europeia acesso a águas britânicas por um período limitado, e sobre até onde as cotas de pesca da UE seriam reduzidas durante esse período.

Ainda na terça-feira (22), Barnier rotulou as ofertas britânicas como inaceitáveis.

Johnson manteve várias conversas com Von der Leyen no final das negociações. "Não foram telefonemas simples —eles falaram muito e foram muito francos no final", disse uma pessoa que participou.

As autoridades britânicas insistem que um acordo permaneceu "na balança" até aproximadamente o meio-dia de quarta-feira (23). "Justamente quando você ficava otimista, eles jogavam mais alguma coisa sobre a mesa", disse um aliado de Boris Johnson.

Outras questões além da pesca ameaçaram desestabilizar o fim do jogo, notadamente as exigências da UE, com resistência de Londres, de poderes de retaliação cruzada que permitiriam a Bruxelas atingir outros setores do Reino Unido —como exportações de carros— se uma disputa sobre pesqueiros saísse do controle.

O penúltimo dia de conversas apresentou uma mistura eclética de peixes e carros. O Reino Unido fez uma pressão de última hora sobre as condições comerciais para peças de carros elétricos —questão crucial para as fabricantes japonesas Nissan e Toyota, que têm grandes operações no Reino Unido. Com isso resolvido, e avanços sobre a pesca garantidos, um acordo entrou no campo de visão.

Na quarta à noite, quando Johnson reuniu seu gabinete para delinear um acordo, havia um raro clima de otimismo natalino após um ano em que o primeiro-ministro foi surrado pela crise da Covid-19.

"O primeiro-ministro insistia que o acordo tinha conseguido o que estava no manifesto —que estávamos recuperando o controle", disse um participante.

'Podemos esquecer o brexit'

Autoridades europeias disseram que as negociações foram mantidas até quarta-feira à noite para ajustar detalhes dos direitos de pesca. Uma entrega de pizzas à noite na sede da Comissão Europeia em Bruxelas indicou que longas horas de trabalho continuavam pela frente.

O trabalho se estendeu até a tarde de quinta (24), enquanto autoridades exaustas mergulhavam na tarefa altamente técnica de recalibrar as cotas.

Definir os direitos de pesca em águas próximas à costa do Reino Unido, ricas em espécies lucrativas como vieiras, foi uma grande parte do esforço noturno, segundo pessoas envolvidas.

Diplomatas de ambos os lados culpavam o outro pelos repetidos atrasos para se anunciar um acordo —com alegações de que a UE tinha errado nos cálculos, exigindo uma revisão dos números, e de que o Reino Unido tentou obter mudanças tardias no acordo.

Mas uma autoridade próxima às negociações disse na quinta que o desafio de calibrar as cotas foi de fato "extremamente difícil".

Na tarde de quinta, os dois lados puderam finalmente confirmar que a negociação exaustiva tinha terminado.

Von der Leyen disse que o acordo a fez sentir "uma tranquila satisfação e, falando francamente, alívio". "Podemos finalmente esquecer o brexit", disse ela. "A Europa continua avançando."


RELEMBRE OS EPISÓDIOS-CHAVE DO BREXIT

Jan.2016
O então primeiro-ministro David Cameron anuncia a intenção de convocar uma consulta popular sobre a filiação do Reino Unido à União Europeia, ocorrida em janeiro de 1973. É um aceno à ala do Partido Conservador que deseja a separação —o líder está convicto de que o apoio à ideia é minoritário

Jun.2016
No plebiscito, o “leave” (sair) surpreende e consegue 52% dos votos, contra 48% do “remain” (permanecer). Cameron, que fez campanha pela segunda opção, renuncia no dia seguinte à votação

Jul.2016
Até então ministra do Interior, a “remainer” moderada Theresa May ascende à liderança conservadora e, por extensão, ao cargo de primeira-ministra

Mar.2017
May aciona o artigo 50 do Tratado de Lisboa, que rege o desligamento de países-membros da UE. Inicia-se a contagem regressiva de dois anos para o Dia D do brexit

Jun.2017
Depois de convocar eleições antecipadas com o intuito de ampliar sua maioria no Parlamento e se fortalecer na negociação do brexit, a premiê leva uma rasteira: sua base diminui, e ela passa a depender do Partido Unionista Democrático, pequena legenda norte-irlandesa, mas ruidosamente anti-UE

Jul.2018
O primeiro plano de May para a saída do bloco é considerado dócil demais por vários de seus ministros, que abandonam o governo

Nov.2018
A líder conservadora anuncia ter chegado a um acordo com os europeus. No fim do mês, presidentes e primeiros-ministros do continente aprovam o pacto de saída

Dez.2018
Diante de uma derrota iminente no Parlamento, o Executivo retira abruptamente o acordo da pauta. Dois dias depois, May sobrevive a uma moção de desconfiança em seu próprio partido

Jan.2019
No maior revés para um governo britânico na era moderna, os deputados rejeitam o projeto por uma diferença de 230 votos. O Partido Trabalhista, principal força de oposição, vê uma oportunidade para derrubar May e, quiçá, forçar uma eleição geral, mas os conservadores brecam o movimento

Mar.2019
Sem conseguir arrancar da UE mudanças significativas no acordo, a premiê o submete novamente à Câmara dos Comuns. A derrota desta vez é por 149 votos.

Em 29 de março, o Dia D, uma terceira consulta termina em novo revés, agora por uma diferença de 59 votos.

Abr.2019
Depois de falhar em cumprir a condição fixada pelo bloco para um adiamento da saída até 22 de maio —aprovar o acordo no Parlamento até 29 de março—, foi combinado um novo prazo: 31 de outubro de 2019.

Mai.2019
May anuncia que renunciará em 7 de junho, após uma nova proposta, que abria a possibilidade de um segundo referendo sobre o brexit, ser mal recebida por seus aliados. Apesar das tentativas de deixar o bloco, Reino Unido participa da eleição para o Parlamento Europeu, uma das entidades da UE

Out.2019
Bruxelas concede um terceiro adiamento ao Reino Unido para a saída do bloco: 31 de janeiro de 2020

Dez.2019
Boris Johnson é eleito primeiro-ministro do Reino Unido. O conservador fez campanha pelo brexit e promete que o país deixará a UE até o fim de jan.20

Jan.20
Parlamento britânico aprova em segunda votação o acordo de separação com a UE; termos recebem a bênção da rainha. No fim do mês, o Parlamento Europeu ratifica o pacto, que entra em vigor

31.jan.20
Exatamente às 23h do horário de Londres (20h de Brasília), o Reino Unido deixa formalmente a União Europeia; tem início o período de transição

13.dez.20
Data final para negociação de um pacto para reger as relações econômicas entre os dois lados. Reino Unido e UE não chegam a um entendimento e decidem prosseguir com os diálogos

24.dez.20
​Reino Unido e União Europeia finalmente celebram o acordo comercial​

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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