Descrição de chapéu The New York Times

Mãe perseguiu assassinos de sua filha, um por um, em todo o México

Miriam Rodríguez tornou-se símbolo de determinação em um país devastado por violência e impunidade

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Azam Ahmed
San Fernando (México) | The New York Times

Miriam Rodríguez segurava uma pistola na bolsa enquanto corria no meio da multidão matinal numa ponte para o Texas. A cada poucos minutos, parava para recobrar o fôlego e estudar a foto de seu próximo alvo: um vendedor de flores.

Ela vinha caçando-o havia um ano, seguindo seus passos online, interrogando os bandidos com quem ele trabalhava e até fazendo amizade com familiares dele para conseguir indicações sobre seu paradeiro.

Agora ela finalmente tinha uma pista: uma viúva lhe telefonara para lhe dizer que o homem que ela procurava estava vendendo flores na fronteira.

Desde 2014 ela vinha rastreando as pessoas que sequestraram e mataram sua filha Karen, de 20 anos. Metade delas já estava na prisão —não porque as autoridades tivessem elucidado o crime, mas porque Miriam as havia perseguido por conta própria, com determinação meticulosa.

Ela cortou e tingiu o cabelo e se fez passar por pesquisadora, assistente de saúde e funcionária eleitoral, tudo para conseguir os nomes e os endereços das pessoas.

Inventou desculpas para conhecer as famílias delas, suas avós e primas que de nada suspeitavam e que lhe forneceram detalhes, por menores que eles fossem. Anotou todas as informações e as enfiou em sua bolsa preta de laptop, montando sua investigação e caçando os responsáveis, um por um.

Retrato de Miriam Rodríguez pendurado na parede de sua casa em San Fernando, no México
Retrato de Miriam Rodríguez pendurado na parede de sua casa em San Fernando, no México - Daniel Berehulak/The New York Times

Miriam conheceu os hábitos, os amigos, as cidades natais e a infância de cada um. Sabia que o florista já ganhava a vida vendendo flores na rua antes de entrar para o cartel Zeta e se envolver no sequestro de sua filha. Agora ele estava foragido e voltara à atividade que já conhecia —vender flores na rua para ganhar a vida.

Sem sequer parar para tomar um banho, ela jogou um casaco comprido por cima do pijama, cobriu sua cabeleira ruiva tingida com um boné de beisebol e enfiou a pistola em sua bolsa. Saiu em direção à fronteira para localizar o vendedor de flores.

Chegando à ponte, vasculhou os vendedores à procura de algum que estivesse vendendo flores, mas naquele dia seu alvo estava vendendo óculos de sol. Quando finalmente o localizou, Miriam ficou nervosa demais e chegou muito perto. Ele a reconheceu e saiu correndo.

O rapaz correu rapidamente pela via estreita de pedestres, tentando escapar. Miriam, que tinha 56 anos na época, o agarrou pela camisa e o dominou, prensando-o contra a grade. Enfiou sua arma nas costas dele.

“Se você se mexer eu atiro”, disse ela, segundo familiares envolvidos em sua corrida louca para capturar o florista naquele dia. Miriam o manteve imobilizado por quase uma hora, esperando a chegada da polícia para fazer a prisão.

Em três anos, Miriam Rodríguez capturou quase todos os integrantes ainda vivos da quadrilha que sequestrou sua filha. Era toda uma turma de bandidos que tentou começar uma vida nova, cada um à sua maneira —como cristão evangélico renascido em Cristo, motorista de táxi, vendedor de carros e babá.

Ela contribuiu para a prisão de dez pessoas ao todo, numa campanha desvairada por justiça que a tornou famosa e vulnerável. Ninguém desafia o crime organizado, muito menos coloca seus membros na prisão. Temendo que o cartel resolvesse dar um basta, Miriam pediu proteção armada ao governo.

No Dia das Mães de 2017, semanas depois de ela ter caçado um de seus últimos alvos, Miriam foi morta a tiros diante de sua casa. Seu marido, que assistia a TV dentro de casa, encontrou-a na rua com o rosto contra o chão e uma mão dentro de sua bolsa, ao lado de sua pistola.

O túmulo de Miriam Rodríguez em cemitério de San Fernando, no México
O túmulo de Miriam Rodríguez em cemitério de San Fernando, no México - Tyler Hicks/The New York Times

Para muitas pessoas em San Fernando, no norte do México, a história dela representa muito do que está errado no país —e do que é tão notável no povo mexicano, sua perseverança quando confronta a indiferença do governo.

O país está tão dilacerado pela violência e pela impunidade que uma mãe de luto precisou elucidar o desaparecimento de sua filha praticamente por conta própria —e morreu de morte violenta por isso.

Relatada em arquivos de processos, depoimentos de testemunhas, confissões dos bandidos que ela localizou e dezenas de entrevistas com familiares, policiais, amigos, funcionários e moradores locais, a campanha espantosa travada por Miriam Rodríguez mudou San Fernando, pelo menos por enquanto.

As pessoas se sentiram animadas com sua luta e indignadas com sua morte. A prefeitura da cidade ergueu uma placa de bronze na praça central em homenagem a Miriam. O filho dela, Luis, assumiu a direção do grupo que ela fundara —um coletivo das muitas famílias locais que perderam entes queridos. As autoridades prometeram prender seus assassinos.

Marcada por uma década de violência, uma guerra brutal entre cartéis e facções, o massacre de 72 migrantes e o assassinato de Miriam Rodríguez, San Fernando recuperou a tranquilidade por algum tempo, como se sua história trágica a deixara exaurida.

A calma durou apenas até julho, quando um garoto de 14 anos, Luciano Leal Garza, foi sequestrado na rua. Foi o sequestro mais noticiado desde a cruzada de Miriam Rodríguez para encontrar sua filha.

O filho de Miriam, Luis, 36, não pôde deixar de enxergar os paralelos, tanto que chorou ao ouvir a notícia do sequestro de Luciano. O garoto foi sequestrado em um dos picapes de sua família, exatamente como acontecera com Karen Rodríguez.

A família de Luciano pagou dois resgates por ele, como também havia feito a família Rodríguez em seu esforço infrutífero para libertar Karen. Estava acontecendo tudo de novo.

Placa com alerta de desaparecimento de Luciano Leal Garza em San Fernando, no México
Placa com alerta de desaparecimento de Luciano Leal Garza em San Fernando, no México - Tyler Hicks/The New York Times

Os habitantes de San Fernando fizeram passeatas para reivindicar justiça para Luciano. Policiais e socorristas fizeram buscas por milhares de quilômetros.

A mãe dele, Anabel Garza, carismática e destemida, virou porta-voz do número chocante de desaparecidos que há no México —mais de 70 mil ao todo— e da maré implacável de mortes em um país onde o índice de homicídios quase dobrou apenas nos últimos cinco anos.

Mas a luta foi muito diferente desta vez. Miriam Rodríguez, cuja coragem e determinação de encontrar sua filha inspiraram a campanha para salvar Luciano, anos mais tarde, também representava um aviso sobre o destino que aguarda pessoas que fazem pressão demais para esclarecer crimes.

Diferentemente da perseguição incansável de Miriam para levar os assassinos de sua filha à Justiça, os pais de Luciano não tentaram punir o poderoso cartel. Eles limitaram suas esperanças a algo muito mais básico: a volta de seu filho.

“Veja bem, todos queremos fazer o que Miriam fez”, comentou o pai do adolescente, também chamado Luciano, no aniversário de três meses do desaparecimento de seu filho. “Mas veja como tudo acabou para ela. Acabou em morte. Esse é nosso medo.”

Uma mãe em busca de sua filha

O walkie-talkie pendurado do cinto do sequestrador tocou várias vezes, interrompendo Miriam Rodríguez quando ela lhe suplicou para que devolvesse sua filha.

As semanas após o sequestro de Karen se embaralharam em uma única sequência apavorante de ligações, ameaças e promessas falsas. Para pagar o primeiro resgate, a família de Miriam contraiu um empréstimo junto a um banco que oferecia linhas de crédito justamente para o pagamento de resgates.

A família seguiu todas as instruções nos menores detalhes. O pai de Karen deixou uma bolsa cheia de dinheiro perto de uma clínica e então ficou esperando em vão no cemitério local para os sequestradores libertarem sua filha.

Sentindo que tinha pouco a perder, Miriam pediu um encontro com membros do cartel local, os Zetas. Para surpresa dela, eles concordaram. Ela se sentou com um rapaz esbelto em um restaurante da cidade, o El Junior.

Era 2014, um tempo especialmente tenebroso em San Fernando. Muitos bares e restaurantes haviam fechado as portas por medo de tiroteios. Valas comuns eram encontradas com tanta frequência que, quando continham os restos de menos de 20 cadáveres, mal chegavam a fazer manchetes.

Os Zetas, no passado uma ala armada do Cartel do Golfo, estavam havia anos em guerra com seus antigos chefes. Eles sequestravam inocentes para exigir resgates para financiar sua guerra ou para lhes servir de recrutas. Como diversão, às vezes organizavam lutas até a morte entre diferentes reféns.

O irmão mais velho de Karen, Luis, mudara-se para outra cidade para escapar do perigo. Mas Karen permaneceu em San Fernando para concluir seus estudos e ajudar sua mãe em sua pequena loja de roupas e botas para vaqueiros, a Rodeo Boots.

No dia 23 de janeiro Karen estava dirigindo na rua quando duas picapes a cercaram, uma de cada lado, bloqueando seu caminho. Homens armados invadiram a picape dela e partiram, levando-a no veículo.

Eles a levaram até a casa de sua família, onde Karen morava durante a semana enquanto sua mãe, Miriam, estava fora, trabalhando como babá no Texas. Com Karen no chão, amarrada e amordaçada, alguém bateu na porta. Era o mecânico que trabalhava para seu tio, que viera consertar a picape da família.

Os sequestradores entraram em pânico e o agarraram também, depois fugiram.

Agora Miriam estava sentada com um dos sequestradores, implorando para que soltasse Karen. O sequestrador insistiu que o cartel não estava com sua filha, mas ofereceu-se para ajudar a localizá-la se Miriam lhe pagasse US$ 2.000 (mais de R$ 10 mil, na cotação atual). Ela pagou. Por meio da estática que saía do walkie-talkie do sequestrador, ela ouviu alguém chamá-lo por um nome: Sama.

Depois de uma semana, Sama parou de atender o telefone. Outras pessoas começaram a ligar para Miriam, dizendo-se sequestradores. Disseram que precisavam de mais um pouco de dinheiro —apenas US$ 500 (R$ 2.500). A família duvidou que isso trouxesse Karen para casa, mas enviou o dinheiro assim mesmo.

Cada pagamento novo acendia nova esperança no coração de Miriam. E, cada vez que uma nova tentativa de recuperar Karen fracassava, ela mergulhava mais fundo no desespero.

A esperança é uma toxina que envenena muitos familiares de desaparecidos. Ou eles a expulsam e tentam seguir adiante, deixando a recordação de seus entes queridos para trás, ou ela os destrói.

Já separada de seu marido, Miriam se mudou para a casa de sua filha mais velha, Azalea. Uma manhã, algumas semanas depois do último pagamento, ela desceu do quarto e disse a Azalea que sabia que Karen nunca ia voltar —que provavelmente estava morta. Miriam disse isso em tom de voz pragmático, como se estivesse falando de como havia dormido naquela noite.

Ela disse à filha que não descansaria enquanto não encontrasse as pessoas que sequestraram Karen. Que as caçaria uma a uma, até morrer. Azalea viu a tristeza de sua mãe endurecer, virando determinação, e sua esperança dar lugar à vingança. Depois disso, sua mãe tornou-se uma pessoa diferente.

O sequestro de Luciano

Como todos na cidade, os parentes de Luciano conheciam a história do sequestro de Karen e do heroísmo trágico de Miriam Rodríguez. E sabiam que sua prosperidade os convertera em alvos óbvios, mais ainda que a família Rodríguez. Vários membros da família de Luciano já tinham sido sequestrados ao longo dos anos, incluindo o pai dele, que em 2012 passara 33 dias como refém.

Os parentes tomavam precauções, monitorando seus filhos com uma intensidade que beirava a vigilância. Mas os sequestradores souberam exatamente como atacar. Passaram semanas preparando uma isca para Luciano, com uma falsa conta no Facebook de uma suposta jovem.

“Você é muito bonito”, dizia uma mensagem enviada a ele da conta falsa. “Eu queria muito te encontrar pessoalmente um dia.”

Esse dia chegou em 8 de julho de 2020, quando eles combinaram um encontro breve em um parque. Luciano enviou uma mensagem à “garota” dizendo que estava cuidando de uma de suas irmãs e não poderia ficar muito tempo.

Ele foi até o parque numa picape que seus pais lhe deixavam usar. Em questão de segundos, homens armados invadiram a picape, empurraram Luciano para o lado e partiram com o veículo, exatamente como os sequestradores haviam feito com Karen seis anos antes.

Os familiares de Luciano passaram as horas seguintes percorrendo a cidade em uma busca frenética por ele. Foi apenas quando sua irmã abriu a conta de Luciano no Facebook que entenderam o que devia ter acontecido.

Pouco tempo depois, os sequestradores telefonaram a seu pai e entregaram o telefone ao adolescente. A primeira coisa que ele perguntou foi se suas duas irmãzinhas estavam bem.

No dia seguinte, o pai de Luciano deixou uma bolsa cheia de dinheiro numa estrada de terra perpendicular à rodovia —a mesma coisa que o pai de Karen havia feito. No dia seguinte os sequestradores disseram que queriam mais.

Para pagar o segundo resgate, o pai de Luciano dirigiu por duas horas e deixou uma mala de dinheiro entre dois pneus carecas em um posto de gasolina abandonado.

Os sequestradores lhe telefonaram quando ele estava voltando a San Fernando. Disseram que devolveriam o jovem Luciano à sua casa na mesma noite. Ninguém foi dormir. Cada ruído da rua os assustava.

Na manhã seguinte os sequestradores já haviam parado de atender os telefones, e a família já sabia que Luciano não ia voltar para casa. Pelo menos não da maneira que eles queriam.

Mesmo assim, eles pesaram as consequências tremendas de procurar a polícia. Mas sentiram que já não tinham nada a perder. “O maior medo de um pai ou uma mãe é perder seu filho”, disse a mãe de Luciano, Anabel Garza. “E eles já tinham tirado o nosso.”

A descoberta

Todo mundo posta fotos nas redes sociais —mesmo bandidos. Miriam só precisava que Sama se descuidasse. Ela já havia confirmado o envolvimento nele no sequestro de Karen, graças ao mecânico sequestrado com sua filha naquela noite. O cartel nunca tivera a intenção de ficar com o mecânico.

Depois que o soltou, Miriam tentou arrancar da memória dele tudo que ele havia visto e ouvido.

Ela virou detetive nas redes sociais. Passou horas incontáveis vasculhando o perfil de Facebook de Karen, à procura de pistas. Uma manhã, sentada no sofá, ela descobriu uma foto no Facebook marcada com o nome “Sama”. Reconheceu o rapaz imediatamente do encontro deles no restaurante. Era o mesmo corpo esguio e rosto liso, sem barba.

Ao lado dele na foto havia uma moça que usava o uniforme de uma sorveteria situada a duas horas de distância, em Ciudad Victoria.

Miriam passou semanas vigiando a sorveteria, até decorar os horários de trabalho da moça. Ficou esperando do lado de fora até o fim de cada turno de trabalho dela, até que um dia Sama apareceu. Quando isso finalmente aconteceu, ela seguiu o casal até a casa deles e tomou nota do endereço.

Mas, para obrigar a polícia a fazer alguma coisa, ela precisava de mais do que um endereço: era preciso um nome. Para isso, ela teria que se aproximar.

Miriam mudou seu corte de cabelo e o tingiu de ruivo forte, para que Sama não a reconhecesse. Então vestiu um uniforme que guardara de um emprego antigo, um cargo de baixo nível no Ministério da Saúde. Ostentando um crachá de aparência oficial, passou quase um dia inteiro conduzindo uma falsa enquete do bairro, até conseguir informações básicas sobre um dos captores de sua filha.

Quando o governo finalmente emitiu um mandado de prisão contra Sama, ele já havia fugido da cidade. Frustrada, Miriam redobrou seus esforços para identificar os outros sequestradores. Não demorou para ter uma pilha de fotos com Sama posando com outros. E então Sama reapareceu, por mero acaso.

Era 14 de setembro de 2014, o Dia da Independência do México. O filho de Miriam, Luis, estava fechando sua loja em Ciudad Victoria para participar das festividades.

Ele tinha um último freguês, um rapaz jovem e esbelto que estava olhando chapéus. Luis parou o que estava fazendo para olhar mais de perto. Era Sama.

Luis ligou para sua mãe e então seguiu Sama, tomando cuidado para não perdê-lo de vista até a polícia chegar. Quando o prenderam, na praça central da cidade, Sama berrou e escoiceou, dizendo que tinha um problema cardíaco.

Na prisão, ele preencheu os detalhes que estavam faltando na investigação de Miriam, fornecendo os nomes e a localização de alguns de seus cúmplices. Um deles, Cristian José Zapata Gonzalez, acabara de completar 18 anos quando a polícia o capturou. Era jovem, mesmo pelos padrões dos recrutas do cartel.

Durante o interrogatório, Cristian estava assustado. Vendo Miriam sentada do lado de fora da sala de interrogatório, ele pediu para ver sua mãe. “Estou com fome”, disse ao policial.

Comovida, Miriam entrou na sala e deu seu almoço ao rapaz —um pedaço de frango frito— e então foi lhe comprar uma Coca. Quando retornou, o policial lhe perguntou o que passara por sua cabeça.

“Ele ainda é uma criança, não importa o que tenha feito, e eu ainda sou mãe”, disse Miriam, segundo sua amiga Idalia Saldivar Villavicencio, que a acompanhara ao interrogatório. “Quando o ouvi falando agora há pouco, foi como se ele fosse meu filho.”

Possivelmente comovido com sua gentileza, Cristian acabou contando tudo. “Posso levar vocês ao sítio onde mataram os reféns e onde os corpos deles ainda devem estar enterrados”, disse ele à polícia, falando das vítimas da quadrilha de sequestradores.

A busca

Um trator decrépito assinalava a sepultura na fazenda abandonada, no final de uma estradinha de terra.

As paredes externas da casa de adobe estavam cheias de buracos de balas, resquícios de um tiroteio ocorrido meses antes. Fuzileiros navais mexicanos haviam matado seis dos cúmplices, disse Cristian em seu depoimento à polícia.

Miriam examinou os destroços deixados pelos sequestradores: manchas tenebrosas sobre mesas sujas, ossos de tamanhos diversos, sendo alguns meras lascas. Um laço de enforcamento estava pendurado no galho de uma árvore.

Miriam congelou quando encontrou uma pilha de pertences pessoais jogados em um canto. Perto do topo da pilha estava um lenço de pescoço que fora de Karen e a almofada do assento da picape dela.

Médicos legistas disseram que o corpo de Karen não estava entre as dezenas que identificaram na fazenda. Mas Miriam contestou a análise, e com razão. No ano seguinte um grupo de cientistas encontrou um pedaço de fêmur pertencente à sua filha.

Luis Rodríguez no local onde o corpo da irmã, Karen, foi encontrado
Luis Rodríguez no local onde o corpo da irmã, Karen, foi encontrado - Daniel Berehulak/The New York Times

A maioria das autoridades sentia um respeito relutante por Miriam Rodríguez, apesar de reclamarem de sua atitude belicosa e de seu linguajar chulo.

“Nem todo mundo se dava bem com ela”, comentou Gloria Garza, funcionária do governo estadual. “Mas não havia como não respeitarmos sua missão.”

Na volta da fazenda, Miriam passou por uma churrascaria situada perto da saída da estradinha de terra que levava à fazenda. Ela havia comido ali com Azalea dois dias após o sequestro de Karen.

Na época, uma moradora do bairro que ela conhecia bem, Elvia Yuliza Betancourt, estivera sentada sozinha a uma mesa, tomando um refrigerante. Miriam a havia cumprimentado e perguntado se ela ouvira falar do sequestro de Karen. Todo mundo já tomara conhecimento do sequestro. Mas Betancourt se fez de desentendida, e Miriam achou isso estranho.

Agora, passando diante da churrascaria outra vez, ela se deu conta: talvez a moça soubesse de alguma coisa. Talvez até estivesse vigiando a fazenda para verificar se a polícia ia chegar.

O medo de Miriam se converteu em raiva enorme. Ela conhecia Betancourt desde que ela era menina, abandonada por uma prostituta no bordel local. Costumava lhe dar as roupas que Karen não usava mais.

Miriam voltou para casa em alta velocidade e mergulhou novamente em sua investigação. Descobriu que Betancourt tinha um envolvimento romântico com um dos sequestradores de Karen, que estava na prisão por um crime diferente.

Como fizera no caso da churrascaria, Miriam passou semanas esperando diante do presídio nos horários de visita, até que Betancourt finalmente apareceu. A polícia então chegou e a prendeu, descobrindo mais tarde que alguns dos telefonemas pedindo resgate haviam sido feitos de sua casa.

Os meses foram se passando, e Miriam continuou a encher sua bolsa de pistas tiradas dos arquivos de processos. Mas a cada dia que passava as pistas ficavam mais tênues.

Alguns dos sequestradores estavam mortos, outros estavam na prisão. Aqueles que ainda estavam livres tentavam viver vidas novas como taxistas, entregadores de gás ou, no caso de Enrique Yoel Rubio Flores, cristão evangélico de uma igreja carismática.

Miriam foi a Aldama, a pequena cidade de 13 mil habitantes onde Enrique vivia, e visitou a avó dele. Soltando um suspiro, a idosa lhe disse que o rapaz sempre se envolvera em problemas, mas agora pelo menos estava frequentando a igreja.

Miriam, claro, começou a frequentar a igreja também. E, claro, encontrou Enrique ali.

Quando a polícia chegou para prendê-lo, dentro da igreja, os fiéis mal conseguiram acreditar, contaram os familiares de Miriam. Um deles pediu a Miriam que tivesse misericórdia. Ela riu.

“Onde estava a misericórdia dele quando mataram minha filha?”, ela teria respondido.

Um despertar

Um mês antes de ser assassinada, Miriam quebrou o pé durante uma perseguição a um dos últimos alvos de sua lista, uma moça que deixara San Fernando e começara a trabalhar como babá para uma família em Ciudad Victoria.

Mais uma vez Miriam passou semanas estacionada perto da casa da família, esperando a jovem aparecer. Ela urinava em copos e esgotou a bateria de seu carro ouvindo o rádio no escuro. Luis contou que teve que ir às escondidas para dar partida no carro de sua mãe.

Quando a polícia finalmente prendeu a moça diante da residência, Miriam tropeçou quando correu na direção deles e fraturou seu pé. No Dia das Mães ela ainda estava com o pé engessado, andando com muletas.

Às 22h21, ela estava indo para casa. Havia voltado a viver com seu marido na pequena casa laranja onde Karen ficara no passado. Miriam estacionou na rua e saiu do carro, movimentando-se devagar devido ao pé fraturado.

Uma picape Nissan branca levando fugitivos da prisão estacionou atrás do carro dela, sem fazer alarde, segundo o boletim policial. Os foragidos dispararam 13 tiros.

A morte de Miriam Rodríguez exemplificou a impunidade que atinge o cotidiano no México. O governo reagiu prontamente. Em questão de meses, prendeu dois dos culpados e matou outro em um tiroteio.

A apenas 30 metros de distância

Luis chegou atrasado ao funeral, quando o cortejo já havia percorrido a rua, com moradores posicionados nas calçadas para olhar o pequeno caixão de Luciano a caminho do cemitério. Ele ficou de lado, chorando, enquanto uma multidão cercava a cova retangular aberta no cemitério.

As autoridades encontraram o corpo do adolescente em outubro numa cova rasa na periferia norte de San Fernando. Os assassinos haviam coberto o local de lixo para desviar a atenção de quem pudesse estar procurando pistas. Voluntários haviam passado pelo local semanas antes sem perceber que havia algo enterrado ali.

O lugar onde o corpo de Luciano Leal Garza foi encontrado
O lugar onde o corpo de Luciano Leal Garza foi encontrado - Luis Antonio Rojas/The New York Times

O pai de Luciano expressou gratidão. Tinha seu filho de volta, de alguma maneira.

“Quero te agradecer por ser o filho perfeito, por ter dado alegria a todos nós a cada dia de sua vida”, disse ele. “Você está partindo e levando nossos corações.”

A mãe de Luciano agradeceu a todos por terem colocado sua própria segurança em risco para ajudar a localizar seu filho. Agradeceu a familiares, amigos e até a desconhecidos.

“Todos vocês ensinaram minha família que juntos podemos resistir”, disse ela. “Precisamos superar o medo de ficar firmes e protestar.”

Para Luis e Azalea, foi difícil deixar de perceber os paralelos com sua própria mãe, sepultada a apenas 30 metros de distância. Ela própria havia dito a mesma coisa, em palavras agora gravadas sobre uma placa afixada a seu mausoléu.

Os pais de Luciano Leal Garza durante funeral do filho em San Fernando, no México
Os pais de Luciano Leal Garza durante funeral do filho em San Fernando, no México - Luis Antonio Rojas/The New York Times

Enquanto os presentes ao enterro se afastavam, Luis e Azalea foram ao túmulo de sua mãe, uma estrutura semelhante a uma igreja, ladeada de ciprestes. Karen estava sepultada ali também, ao lado de sua mãe.

Eles sabiam que eram alguns dos poucos afortunados que pelo menos tinham um lugar onde chorar seus mortos. Tantas famílias nunca chegam a encontrar os restos de seus entes queridos. O fato de Karen e Miriam agora estarem lado a lado representava pelo menos um pequeno consolo.

Luis e Azalea ficaram sentados algum tempo no local, relembrando coisas do passado, de uma maneira que raramente se permitiam fazer. As outras pessoas partiram, mas eles dois continuaram ali, agarrando-se àquele momento.

Tradução de Clara Allain

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