Morre aos 80 anos Tabaré Vázquez, 1º presidente de esquerda da história do Uruguai

Líder do país durante dois mandatos, oncologista foi vítima de um câncer no pulmão

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Buenos Aires

Morreu na madrugada deste domingo (6), de câncer no pulmão, o ex-presidente do Uruguai Tabaré Vázquez, que comandou o país por dois mandatos. Ele tinha 80 anos.

Desde que recebera a notícia de que a doença havia se espalhado para outros órgãos, há algumas semanas, ele passou a se despedir de amigos, familiares e colegas da política.

A chegada do médico oncologista à Presidência, em 2005, representou o fim do domínio dos dois partidos mais tradicionais do Uruguai, Colorado e Blanco, hoje mais afinados com a centro-direita.

Ex-presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, morreu na madrugada deste domingo (6) - AFP

Segundo publicação no Twitter de Álvaro Vázquez, filho do ex-presidente, o líder morreu em casa, acompanhado de sua família. "Queremos agradecer a todos os uruguaios pelo amor recebido por ele ao longo de tantos anos", diz a mensagem.

Por meio de um comunicado, os familiares disseram que, devido aos protocolos de segurança na pandemia do coronavírus, não haverá velório, apenas uma cerimônia reservada a seus filhos e netos.

Na tarde deste domingo, um cortejo fúnebre partiu da Esplanada da Administração Municipal de Montevidéu, no centro da capital, para o Cemitério La Teja, bairro do ex-presidente, onde ele foi sepultado sob aplausos em uma cerimônia íntima com os seus familiares. “Pedimos à população para nos acompanhar nesses atos por meio da cobertura jornalística”, disseram os familiares.

Também solicitaram aos que optarem por participar da procissão que evitem aglomerações, mantendo o distanciamento, usando máscaras faciais e tomando todas as medidas sanitárias estabelecidas pelas autoridades competentes.

Vázquez, do Partido Socialista, integrante da Frente Ampla —aliança de centro-esquerda que inclui de sociais democratas até remanescentes dos guerrilheiros tupamaros—, foi o primeiro presidente de esquerda da história do Uruguai e responsável por implementar as políticas que tiraram o país da grave crise econômica na qual se encontrava, reflexo da crise argentina de 2000 e 2001.

Neste domingo, a Frente Ampla lamentou a morte de seu antigo líder. "É com grande pesar que informamos a morte de nosso presidente, Tabaré Vázquez. Seu exemplo de integridade política e compromisso inabalável com nosso país e com o povo nos levará a continuar seu legado", escreveu a coalizão em uma rede socoal.

O primeiro mandato de Vázquez, entre 2005 e 2010, lançou as bases de um modelo que faria com que o Uruguai tivesse crescimento sustentado do PIB por 15 anos. Além de se beneficiar da alta no preço das commodities, o governo de Vázquez fez investimentos em infraestrutura, energia renovável, serviços e turismo.

Ele foi sucedido no cargo pelo aliado José "Pepe" Mujica (também da Frente Ampla), que levou adiante o plano de modernização do país, com legislações que garantiram direitos civis. Vázquez, porém, era diferente do sucessor em muitos aspectos.

Enquanto o primeiro se esforçou para que a lei de anistia fosse derrubada, e julgamentos relacionados à repressão no regime militar (1973-1985), realizados, Mujica foi contra. Já "Pepe" liderou a aprovação das legislações pró-aborto e da regulamentação de produção e venda de maconha.

Vázquez, médico e católico, era contra ambas as pautas. Uma vez aprovadas pelo Congresso, no entanto, não trabalhou para revogá-las. Ao contrário, garantiu que as regras fossem aplicadas. "Sou um legalista", dizia ele a quem perguntava se a postura não era uma contradição.

Em seus mandatos, houve elevado gasto social acompanhado de alta nos impostos, o que causou certa insatisfação. Na segunda gestão, entre 2015 e 2020, seus níveis de popularidade caíram, embora tenha terminado a primeira com mais de 80% de aprovação popular.

Com a Frente Ampla, o Uruguai se abriu mais a investimentos estrangeiros e, com seus principais parceiros, Brasil e Argentina, em crise, diversificou os sócios comerciais. Passou a exportar matérias-primas em maior volume a países asiáticos.

Entre 2001 e 2018, as exportações do Uruguai para os dois vizinhos caíram de 37% a 19%.

No final do segundo mandato de Vázquez, 65% da população do Uruguai fazia parte da classe média. A pobreza caiu de 32,5% da população em 2005 para 8% em 2019, de acordo com dados do governo.

Vázquez nasceu e cresceu no bairro portuário de La Teja, de classe média baixa, e era torcedor do Progreso, clube local de futebol no qual seu avô jogou e do qual seria presidente entre 1979 e 1989.

Durante uma visita realizada pela Folha ao bairro, às vésperas das eleições de 2014, vizinhos afirmavam que ele ainda visitava a região e os amigos de infância. Ali foi, inclusive, seu endereço eleitoral, e a cada pleito, após votar no clube Arbolito, visitava uma de suas irmãs, que vivia ao lado.

O ex-presidente era o quarto filho de um trabalhador da indústria do petróleo. Bom aluno, ganhou uma bolsa para estudar medicina em Paris. Tornar-se oncologista, dizia ele, era um desejo, já que o câncer matou seus pais. Durante o primeiro mandato, tentou manter a rotina no consultório, um dos mais procurados do Uruguai, e o fez durante um período, até que as tarefas presidenciais o impediram.

No cargo, levou adiante várias campanhas contra o tabaco e chegou a falar, em uma de suas intervenções na reunião anual da ONU, em Nova York, sobre os males dos cigarros. Era uma de suas principais bandeiras. Uma trágica ironia que, mesmo sem nunca ter fumado, seria vítima de um câncer no pulmão.

Vázquez foi casado com María Auxiliadora Delgado, com quem teve cinco filhos, um deles adotado. A morte da mulher, no ano passado, deixou-o muito abalado.

O líder uruguaio valorizava muito a institucionalidade. Já doente e bastante debilitado, votou nas últimas eleições e declarou que "tudo o que queria era sobreviver para poder passar a faixa ao sucessor".

Tratou o adversário da Frente Ampla no pleito, Luis Lacalle Pou (do Partido Nacional), com bastante cordialidade, e a transição foi respeitosa e tranquila.

Os dois chegaram a viajar juntos para a posse do argentino Alberto Fernández, realizada antes de Lacalle Pou assumir o cargo. Vázquez caminhava com dificuldade, apoiado no então presidente eleito. O atual presidente, por sua vez, tratou o antecessor com enorme respeito no dia em que chegou formalmente à Presidência, em março de 2020.

O atual presidente inclusive lembrou a boa relação que teve com o antecessor ao lamentar a morte neste domingo. "Ele [Vázquez] enfrentou sua última batalha com coragem e serenidade. Tivemos diálogos pessoais e políticos que valorizo ​​e me lembrarei. Ele serviu seu país e, com seu esforço, obteve importantes conquistas. Ele era o presidente dos uruguaios. O país está de luto", escreveu.

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