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O Chile e a repressão do Estado

Na transição que foi acordada com a ditadura, houve pouca justiça

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Victor Tricot
Latinoamérica21

Na semana passada, novamente, uma pessoa sofreu a perda de um olho durante um protesto em Santiago do Chile. Um fotojornalista, que mantinha registros das manifestações, junta-se à vergonhosa lista de centenas de vítimas oculares desde o início da revolta de outubro de 2019. Isto acontece logo após o retorno do Ministro das Relações Exteriores, Andrés Allamand, que visitou diferentes países da Europa tentando limpar a imagem internacional deixada pelo governo de Sebastián Piñera. Graças ao processo constituinte, a inevitabilidade das convulsões sociais nos países que "progrediram" e a imagem positiva do país no exterior fizeram parte da bateria discursiva implantada pelo Ministro das Relações Exteriores. Não é preciso dizer que os quatro relatos de violações dos direitos humanos no país no último ano não foram uma parte central de sua jornada.

Atualmente, graças à mobilização popular, o país se envolveu em um processo constituinte de características inéditas. Existem e continuarão surgindo, como esperado, discussões que hegemonizam o debate público, tais como: quem poderá participar do processo; como os constituintes serão eleitos; a implementação da paridade, quotas reservadas aos povos indígenas, a eleição das candidaturas, a formação de coalizões e alianças, entre muitos outros tópicos.

Entretanto, apesar deste trânsito democratizador que procura mudar a Constituição, parece não apenas necessário, mas imperativo, aprender com nosso passado recente. O fato de a direita, herdeira do Pinochetismo, negar, banalizar ou tornar invisíveis as violações dos direitos humanos não é novidade. Entretanto, é também impressionante que, em pleno século XXI, as características distintivas da resposta do Estado seja o uso da violência e as violações dos direitos humanos.

Acreditava-se que o uso extensivo de práticas repressivas era uma coisa do passado. Pelo menos para as pessoas comuns que consideravam que as ações policiais que deixaram um triste número de mortes, torturas, mutilações e repressões maciças tinham sido erradicadas e eram incongruentes com a democracia. Isto para a maioria, já que fazem vários quinquênios que as comunidades e organizações Mapuche politicamente ativas têm denunciado o assédio, a militarização, a criminalização e o racismo que sofrem sistematicamente por parte dos Carabineros.

Na guerra imaginária contra o inimigo interno, também imaginário, que o Presidente Piñera declarou em 21 de outubro de 2019, nenhum recurso foi poupado para proteger com veemência e violência o status quo, recorrendo às Forças Armadas, à Polícia Investigativa, mas principalmente aos Carabineros como a instituição à frente da repressão. A ação eticamente repreensível ou diretamente criminosa da polícia, entretanto, não é nova e resultou em um descrédito progressivo e lapidário perante aos cidadãos.

Tampouco são novos os conceitos e as práticas ideológicas da guerra e o inimigo interno, já utilizados pela ditadura, resultando em uma miríade de assassinatos, desaparecimentos e torturas.

Apesar disso, na transição que foi acordada com a ditadura, houve pouca justiça. Grande parte das violações dos direitos humanos perpetradas pelas agências de segurança permaneceram impunes e utilmente esquecidas, deixando como memória da transição frases como "justiça na medida do possível" do ex-presidente Patricio Aylwin. Ou as advertências sobre a impossibilidade de investigar a tortura ocorrida durante a ditadura, como declarou o então Ministro José Miguel Insulza.

Entretanto, graças ao trabalho persistente e à dedicação de organizações que faziam parte do então forte movimento de direitos humanos, o Estado foi pressionado a fazer duas importantes contribuições para a memória histórica do país. O relatório da Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação (Relatório Rettig) que tratou das execuções, desaparecimentos e violência política após o golpe militar. E o relatório da Comissão Nacional sobre Prisioneiros Políticos e Tortura (Relatório Valech) que abordou a tortura abjeta e o tratamento degradante realizado pelos agentes da ditadura durante seus 17 anos.

Ambos os relatórios foram relevantes, pois expuseram muitas das falsidades construídas desde a ditadura para justificar os horrores cometidos. Entretanto, nenhum dos relatórios forneceu dados sobre os perpetradores das violações, apesar dos muitos testemunhos coletados. Houve uma verdade parcial, mas não houve justiça. Houve memória, mas não houve justiça.

Em um país que, durante décadas, demonstrou ser o epítome da qualidade democrática, a repetição do discurso negacionista sobre as violações dos direitos humanos e a possibilidade onipresente de impunidade para os crimes cometidos não é aceitável. É de vital importância intervir com os Carabineros, uma instituição que, segundo a pesquisa do CEP, passou de níveis relativamente altos de confiança institucional (57% em 2015) para ser uma das que mais produz desconfiança (17% em dezembro de 2019).

Isto se deve à exposição na mídia do caso de corrupção de milhões de dólares envolvendo altos funcionários da instituição, onde um grupo de forças especiais tentou esconder o assassinato de um integrante da comunidade Mapuche em 2018 e a armação para incriminar oito líderes Mapuche presos com provas falsas em 2017. Isto somado à atuação da instituição no contexto dos protestos desencadeados desde outubro, nos quais para 88% dos chilenos, os Carabineros violaram os direitos humanos.

Isso nos leva a nos perguntar em que ponto essas situações deixam de ser "apenas casos isolados", como argumentado pelo governo, e não são nada mais do que representativas de um mal sistêmico? Ou, dito de outra forma, não deveriam os Carabineros sofrerem uma intervenção urgente pelo poder civil ou serem diretamente refundados? Possivelmente esta seria a única maneira de a instituição, ou outra que lhe suceda, gozar de legitimidade aos olhos dos cidadãos.

Na quarta-feira, 14 de dezembro, um jornalista surpreendeu o Presidente Piñera ao perguntar-lhe: como você pode continuar governando com 7% de aprovação? Além das platitudes iterativas de sua resposta, cabe se perguntar se não são as balas, o gás e a repressão dos Carabineros. Tudo isso é inaceitável em uma democracia de qualidade.

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