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Perdi entrevista com eleitor conservador americano por não aceitar tirar a máscara

Cobrir a eleição dos EUA durante uma pandemia foi o maior desafio da minha carreira como repórter

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Washington

Expectativa: 59 dias depois de uma quarentena rigorosíssima, saí de casa em 29 de maio para acompanhar a reabertura das atividades em Washington. Precisava, entre outras coisas, registrar como moradores da capital dos EUA repovoariam bares e restaurantes que passariam a servir grupos de até dez pessoas em mesas somente do lado de fora.

Realidade: no início da noite, precisei correr para a frente da Casa Branca, onde milhares de pessoas se reuniam pela primeira vez na cidade em protestos contra a morte de George Floyd, um homem negro que havia sido asfixiado por um policial branco quatro dias antes, no estado de Minnesota.

Manifestantes marcham em direção à Casa Branca durante protesto contra violência policial nos EUA
Manifestantes marcham em direção à Casa Branca durante protesto contra violência policial nos EUA - Eric Thayer/Reuters

À época, os EUA já eram líderes no mundo de pandemia, com mais de 1,7 milhão de casos e 101 mil mortes por Covid-19 —hoje são mais de 16 milhões de diagnósticos e as vítimas ultrapassam 300 mil.
Eu havia reportado todas as fases da pandemia com entrevistas feitas, em sua maioria, por vídeo ou telefone, e aquela era a primeira vez em meses que me deparava com mais de quatro pessoas num mesmo lugar.

Parte dos manifestantes parecia estar reaprendendo a se comportar em meio a grupos tão grandes, quase sempre usando máscara, mas ciente de que o distanciamento social era quase impossível durante protestos.

Para nós, jornalistas, tudo também era novidade. No primeiro momento, fazer reportagem quase que exclusivamente à distância e, depois, a mudança abrupta, sem aviso prévio, de que agora seria preciso acompanhar e entrevistar as pessoas sob restrições e cuidados que antes eram impensáveis.

As manifestações persistiram por semanas em centenas de cidades americanas, transformando-se na maior onda antirracismo nos EUA desde 1968 e em elemento chave para a disputa presidencial de 3 de novembro.

Não posso deixar de dizer que cobrir a eleição dos EUA durante uma pandemia foi o maior desafio da minha carreira como repórter.

As campanhas eleitorais costumam ser um momento de efervescência, quando jornalistas acompanham inúmeros políticos e eleitores em eventos públicos e fazem diversas viagens pelo país.

O objetivo, como gostamos de repetir, é “sentir a temperatura da rua” e tentar entender as particularidades sócioeconômicas que podem determinar o voto em cada região.

Mas 2020 mudou tudo isso. Depois das primárias de Iowa, em fevereiro, quando a pandemia ainda não havia se anunciado oficialmente nos EUA, minha primeira viagem para cobrir a eleição americana ocorreu só em setembro, a menos de dois meses do pleito.

Fui para a Virgínia Ocidental, estado onde a maioria da população é branca e rural, o que reflete a influência da narrativa conservadora sobre a base mais fiel de Trump.

Entre o discurso pró-armas e anti-aborto, dois de três eleitores do presidente que entrevistei na primeira hora em uma das cidades pediram para eu tirar a máscara ou cumprimentá-los com um aperto de mão. Educadamente, me recusei a fazer as duas coisas e, em um dos casos, perdi o entrevistado, que desistiu de conversar comigo, visivelmente irritado.

Fui ainda para a Carolina do Norte, Geórgia e Flórida, considerados decisivos para eleição e onde as pesquisas indicavam intenções de voto bem divididas entre Trump e Biden.

Em casos como esses, o novo normal trouxe uma vantagem para jornalistas, que precisam sempre entrevistar gente dos dois lados do tabuleiro. Identificar a preferência política dos eleitores ficou muito mais fácil antes mesmo de abordá-los para a entrevista: quem usa máscara é democrata e os que não usam, republicanos.

Nos EUA, a cobertura da pandemia se misturou e permeou a dos protestos antirracismo e a das eleições. Após tanto tempo, só a primeira das três ainda persiste.

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