Descrição de chapéu Brexit

Saída do Reino Unido da UE está longe de acabar pois pacto é limitado, diz autor de livro sobre brexit

Acadêmico ítalo-britânico Justin Orlando Frosini afirma que acordo deixa questões vitais em aberto

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Milão

O acordo que vai regular a nova relação entre Reino Unido e União Europeia saiu uma semana antes do fim do prazo e passa a valer a partir desta sexta-feira (1º), mas o brexit está longe de terminar.

Para o ítalo-britânico Justin Orlando Frosini, 49, professor de direito público comparado da Universidade Luigi Bocconi, em Milão, o acordo anunciado em 24 de dezembro é limitado, deixou diversas questões sem detalhes e, por isso, ainda haverá muitas discussões sobre a separação.

E, se a obtenção de um documento final dentro do prazo representa uma vitória simbólica para o premiê britânico, Boris Johnson, artífice do brexit desde a campanha para o referendo de 2016, não é possível apontar um vencedor entre Reino Unido e União Europeia.

Cartola com a cor da União Europeia e a frase 'por que o brexit?' em protesto em Londres
Cartola com a cor da União Europeia e a frase 'por que o brexit?' em protesto em Londres - Hannah McKay - 24.dez.20/Reuters

"Não há vencedores. Se analisarmos ponto por ponto, setor por setor, parece-me que a União Europeia conseguiu mais coisas, e o Reino Unido precisou ceder em muitos pontos. Mas, para o bloco, tudo isso não é positivo, é a perda de um membro importante", afirma Frosini, autor do livro "Da Soberania do Parlamento à Soberania do Povo - A Revolução Constitucional do Brexit", lançado em julho.

À Folha, em entrevista concedida em dois telefonemas, um antes do acordo, em 16 de dezembro, e outro depois, no último dia 26, ele também compara a atuação de Boris na condução do brexit e da pandemia.

*

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse no anúncio do acordo que "é hora de virar a página e olhar para o futuro''. O brexit acabou? Diria que não. Há uma série de questões que precisam ser enfrentadas nos próximos anos e que não foram tratadas no acordo. Como, por exemplo, no campo dos serviços financeiros, sobre o qual o documento diz muito pouco. Não está claro se continuarão sendo aplicadas as regras que já existiam antes ou se, em vez disso, haverá barreiras para esses serviços, o que obviamente é muito importante considerando o papel de Londres como centro financeiro.

Um outro exemplo no qual o relacionamento entre Reino Unido e União Europeia continuará a ter altos e baixos é no campo da pesca. As duas partes chegaram a um acordo, no qual a quantidade de peixe que pode ser pescada nos mares britânicos por europeus será reduzida em 25%, mas em um período de transição de cinco anos. Então, em algum momento, isso também terá que ser renegociado.

E, em cada situação, precisa ver como vão funcionar as outras relações. Até o momento, o Reino Unido disse que vai seguir ou continuar uniforme às regras relativas a auxílios estatais, política ambiental etc. Mas não é obrigado a seguir o direito da UE, então teremos que ver o que acontece quando começar a mudar um pouco suas regras e políticas, e se, a um certo ponto, a UE verá nisso uma forma de competição desleal. Tem todo esse discurso do "campo de jogo nivelado" que deve ser mantido e, a qualquer momento, um dos lados pode acusar o outro de não respeitar essas regras. Ainda ouviremos falar do relacionamento da UE e do Reino Unido por muitos anos.

Do ponto de vista do conteúdo do acordo final, é possível dizer que houve um vencedor entre União Europeia e Reino Unido? Não há vencedores. Se analisarmos ponto por ponto, setor por setor, do que eu vi —e ainda não vi tudo, são mais de 1.200 páginas—, parece-me que a UE conseguiu mais coisas, e o Reino Unido precisou ceder em muitos pontos. Mas, para a UE, como definiu a Ursula von der Leyen, citando Shakespeare, a despedida é uma "doce tristeza". Para o bloco, tudo isso não é positivo, é a perda de um importante membro. Fizeram de tudo para mantê-lo, e, para a UE, é difícil ter uma atitude triunfante.

Já Boris Johnson é o contrário. Basta ver que, quando foi anunciar o acordo, vestia inclusive uma gravata com desenho de peixes! Tudo para frisar a vitória política que obteve no tema da pesca. Tudo se torna um jogo entre as partes, ainda estamos numa fase de teatro, aquele da política, em que cada um busca salientar as próprias conquistas. Certamente uma coisa importante é o fato de que a UE, nessas negociações, manteve-se unida. E há quem diga que, com a saída do Reino Unido, ela fica ainda mais unida. Se Boris tinha qualquer intenção de dividir Berlim de Paris ou Madri de Roma, ele não conseguiu.

O acordo é um documento com mais de mil páginas. Tem algo que o surpreendeu? É um acordo muito limitado. Como definiram alguns especialistas, é um acordo fino, estreito, há muitas questões que não foram encaradas com detalhes. Isso não chega a ser uma surpresa, porque o tempo era muito curto, temos que considerar que quando foi obtido o acordo comercial entre UE e Canadá foram cinco anos de negociações, e dessa vez tudo foi feito com muito mais pressa, com as negociações tendo sido iniciadas só após 31 de janeiro. E, depois disso, veio a pandemia, que desacelerou tudo.

Mas aquilo que me tocou muito, sendo eu um professor universitário, é o fato de o Reino Unido sair do projeto Erasmus [programa de intercâmbio universitário europeu]. Não estava acompanhando diretamente esse aspecto, então essa notícia me surpreendeu, porque, honestamente, aqui era necessário ter feito um esforço a mais. Estamos falando da possibilidade de jovens ingleses girarem pela Europa e dos europeus irem para a Grã-Bretanha. Isso, na minha opinião, vai contra inclusive o interesse do Reino Unido, porque, em 2017, foram quase 17 mil estudantes britânicos que participaram do Erasmus, passando algum período em outra universidade europeia. E mais de 31 mil cidadãos da UE foram estudar no Reino Unido. Então é o Reino Unido se prejudicando sozinho, porque essa troca não será mais frequente.

Por que a questão da pesca foi central até os momentos finais das negociações? A questão da pesca, a meu ver, é puramente ideológica e simbólica. A pesca, para o Reino Unido, vale aproximadamente 0,1% do PIB do país. Estamos falando de uma questão econômica muito marginal, mas isso está ligado à questão da soberania. Então virou a decisão mais importante. Mas é um falso problema quando se trata de alcançar um acordo comercial. Porque, quando dois países ou dois blocos decidem entrar em tratativas para obter um acordo comercial, parte-se do pressuposto que as duas partes são plenamente soberanas. Levantar a questão da soberania é uma falsa questão, porque o Reino Unido conquistou a sua quando saiu da UE no dia 31 de janeiro. Obviamente, é uma questão política.

O professor associado da Universidade Bocconi, em Milão, Justin Orlando Frosini, durante conferência
O professor associado da Universidade Bocconi, em Milão, Justin Orlando Frosini, durante conferência - Universidade Johns Hopkins/Divulgação

Na nossa primeira conversa, o sr. dizia que, mais que a pesca, um dos obstáculos mais importantes seria a definição do tribunal que vai regular o cumprimento das regras. Como isso ficou no acordo? Esse é um ponto muito interessante. Desse ponto de vista, o Reino Unido insistia no fato de não querer ser submetido à jurisdição do Tribunal de Justiça da União Europeia, e, de fato, nesse ponto ele ganhou. Essa não será a corte que vai assegurar que o acordo seja cumprido no futuro. Foi introduzido um mecanismo de resolução de disputas, que é um tipo de corte arbitrária que terá membros britânicos e europeus que deverão checar se o acordo tem sido respeitado.

É possível comparar a atuação de Boris Johnson na gestão da pandemia e do brexit? Sim, totalmente. Podemos dizer que nos dois casos se vê o modo de agir de Johnson, um político que olha sempre as pesquisas, que olha muito aquilo que lhe é conveniente politicamente naquele momento. Entretanto, não hesita nem um pouco em mudar completamente de posição se isso for necessário para haver consenso do ponto de vista político.

A mesma coisa foi com a pandemia. Ele teve uma atitude muito parecida com a dos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro, parecia fazer parte daquele grupo que dizia que era só uma gripe, que não precisava se preocupar. Depois, quando seu país começou a ser afetado, ele mudou completamente de posição. Johnson agora demonstra, pelas medidas que está tomando, estar muito mais alinhado a Giuseppe Conte [premiê da Itália] que a Trump. Mesmo assim, continua a agir sempre de forma meio leve demais, "vamos conseguir", "sairemos dessa". Na minha opinião, ainda agora não tem o tom que deveria ter um líder em um momento grave como este. Ele ainda trata muito na leveza, tudo é um slogan.

Quem chega ao fim do ano mais forte internamente: Reino Unido ou União Europeia? A União Europeia. Vimos nos dias passados que Boris Johnson quis fazer visitas a Angela Merkel, em Berlim, e a Emmanuel Macron, em Paris, e os dois o fizeram entender que, nessa fase, um encontro não seria possível, que todo relacionamento deveria ser via Comissão Europeia. Isso é muito significativo, sobretudo vindo de dois países que são considerados pilares da UE. Além disso, eu disse pouco depois do referendo de 2016 que o brexit poderia ter como efeito de médio e longo prazo a desintegração do Reino Unido, em particular pela situação da Escócia, que está muito descontente de ter de sair da UE. E a questão muito delicada da Irlanda do Norte. Sobre o brexit, há uma divisão tanto entre a população quanto territorialmente.


Raio-x

Professor associado de direito público comparado da Universidade Luigi Bocconi, em Milão, uma das mais tradicionais nas áreas de economia, administração e direito, o ítalo-britânico Justin Orlando Frosini, 49, é autor do livro ‘Da Soberania do Parlamento à Soberania do Povo - A Revolução Constitucional do Brexit’, lançado em julho (sem edição no Brasil). Também é professor-adjunto de Direito Constitucional na Universidade Johns Hopkins e diretor do Centro de Estudos Constitucionais e Desenvolvimento Democrático (CCSDD, na sigla em inglês).

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