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A nova versão de irrealidade na longa teia do conspiracionismo

A realidade é falsificada por meio da negação da ciência, da doença e dos resultados eleitorais

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Federico Finchelstein

Professor de história na New School, em Nova York, e doutor pela Universidade Cornell. É autor de obras sobre fascismo, populismo, o Holocausto e ditaduras

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Há pessoas que acreditam que o coronavírus é um instrumento de dominação mundial criado pelos inimigos de seu país.

Eles são os mesmos que acreditam que quando seus candidatos não ganham houve fraude, ou que qualquer coisa que o líder diz é simplesmente uma tradução dos desejos do povo.

Essas são as pessoas que apoiam Donald Trump em sua tentativa de golpe de Estado cujo fim patético, fugaz e atroz foi o assalto ao Capitólio.

O presidente dos EUA, Donald Trump, que dará lugar a Joe Biden neste mês, discursa em Jacksonville com a bandeira do país ao fundo
O presidente dos EUA, Donald Trump, que dará lugar a Joe Biden neste mês, discursa em Jacksonville com a bandeira do país ao fundo - Tom Brenner - 24.set.2020/Reuters

Em resumo, estamos vendo uma nova versão de irrealidade na longa teia do conspiracionismo histórico. Ou, dito de outra forma: há uma nova configuração dos antivacinas e dos antidemocráticos numa chave pós-fascista.

Como os fascismos, os novos populismos misturam, deformam e negam a ciência por meio de fantasias conspiratórias.

Nos Estados Unidos, que hoje têm o maior número de doses de vacina disponíveis, o presidente de saída, Trump, ainda não foi vacinado, apesar dos conselhos e da frustração de alguns de seus assessores.

De fato, o grande número de americanos que não planejam ser vacinados se distingue, grosso modo, por seu "trumpismo" em nível político.

Assim, as ilusões e mentiras utilizadas nos círculos políticos são abundantes.

Por exemplo, os ideólogos trumpistas, muitas vezes postados ou repostados por seu líder derrotado, sustentam que as vacinas são uma forma de controle social e populacional por parte do Estado ou uma arma empunhada conscientemente pela China.

Assim, a campanha nacional e global de vacinação é retratada por evangelistas cristãos fanáticos e seguidores da teoria da conspiração de QAnon que pensam que Trump enfrentou e está enfrentando uma conspiração de pedófilos canibais satânicos que dominam o Partido Democrata, Hollywood e as finanças globais.

De acordo com esse delírio, esta conspiração é responsável por todos os problemas do mundo, e isso incluiria também as vacinas.

Nesse contexto, a realidade é falsificada por meio da negação da ciência, da doença e dos resultados eleitorais.

Como o Washington Post aponta, muitas das pessoas que professam a mentira óbvia de um complô das vacinas para controlar o corpo das pessoas são as mesmas que acreditam na grande mentira de uma vitória de Trump nas eleições presidenciais.

Apoiadores de Donald Trump, em discordância com a derrota do republicano na eleição presidencial nos EUA, protestam em Las Vegas
Apoiadores de Donald Trump, em discordância com a derrota do republicano na eleição presidencial nos EUA, protestam em Las Vegas - Ronda Churchill - 6.nov.2020/AFP

Em particular, não devemos nos surpreender que as pessoas que negam a realidade em geral a neguem também no sentido particular das vacinas.

O que estamos vendo agora em nível global é uma nova aliança política dos ignorantes, dos crédulos e dos mentirosos.

Antes de Trump, os "antivaxxers" não tinham um movimento político para canalizar sua paranoia. Isso agora é possível para muitos deles, pois como o historiador do populismo americano Richard J. Hofstadter havia advertido, a teoria da conspiração e a suspeita indiscriminada eram centrais para o estilo populista xenófobo nos Estados Unidos.

Mas se em Trump essa situação é apresentada de forma ambígua, no sentido de que ele também, contraditoriamente, quer se apresentar como o principal apoiador da vacina, nesse sentido o republicano desempenha dois papéis: "pró-vacina " para o público independente e "antivacina" para seus seguidores.

No Brasil, Jair Bolsonaro adotou uma posição claramente obscurantista. Ele retrocede uma experiência brasileira de mais de um século como líder em campanhas de vacinação em massa.

Se o Brasil foi um exemplo para a América Latina e o mundo, hoje é o contrário, um país governado por um paranoico extremo que elogia a farsa.

Bolsonaro disse que não planeja ser vacinado e até mesmo argumentou que a vacina pode fazer com que nas mulheres cresçam barbas e os homens se tornem crocodilos ou comecem a falar de uma forma "afeminada".

Como nos Estados Unidos, a vacina da Pfizer é a principal vítima dessa campanha de falsificação da realidade que contém elementos homofóbicos, xenófobos e nacionalistas.

Frascos com a vacina contra o coronavírus fabricada pela Pfizer, em hospital de Santiago, no Chile
Frascos com a vacina contra o coronavírus fabricada pela Pfizer, em hospital de Santiago, no Chile - Claudio Reyes - 15.jan.2021/AFP

Nada disso é novo, pois, como disse Hofstadter, o estilo paranoico já existia muito antes e era de fato a principal marca de reacionários, e depois de fascistas e de antissemitas: "Esse estilo tem circulado desde muito antes de que a extrema direita o descobrisse, e seus alvos variavam do 'banco internacional' aos maçons, passando pelos jesuítas e pelos fabricantes de armas”.

As coisas nem sempre foram assim na história do populismo clássico. Foram precisamente os primeiros regimes populistas que chegaram ao poder depois de 1945 que deixaram essas ilusões para trás. Quando precisou, o populismo se voltou para a ciência.

E de fato, historicamente, nos períodos clássicos do domínio populista, a ciência não sofreu ataques e o desenvolvimento científico e médico não foi geralmente ignorado.

Além do folclore do espiritismo tão bem retratado pelo escritor Tomás Eloy Martínez em “La novela de Perón”, sobre o ocultismo e a magia do Peronismo da Triplo A com José López Rega e Isabel Perón como lideres, o peronismo, como o populismo em geral, não era reacionário em sua relação com a ciência.

O apoio à ciência se estende à saúde dos próprios dirigentes, que em muitos casos prometeram ser vacinados primeiro. A situação é bem diferente para os novos populismos de extrema direita. Para eles, a conspiração das vacinas é real e a realidade é simplesmente descartável.

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Tradução de Maria Isabel Santos Lima

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