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Eleições EUA 2020 Governo Biden

Biden assume com oposição inédita de mídia conservadora e extremista

Aparato de comunicação de ultradireita propaga conspirações e incita violência

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Lúcia Guimarães
Nova York

O democrata Joe Biden toma posse nesta quarta-feira (20) com 35% dos americanos convencidos de que ele não é o presidente eleito dos Estados Unidos. Entre republicanos, o número sobe para 65%.

Não haveria a grotesca invasão do Capitólio pela turba trumpista, no dia 6 de janeiro, sem essa grande mentira. A farsa sobre a eleição presidencial, que Biden venceu por larga margem no voto popular, foi cuidadosamente cultivada ao longo da campanha —quando o candidato derrotado, Donald Trump, dizia, em comícios e nas redes sociais, que havia apenas duas opções: sua vitória ou uma eleição roubada.

O presidente eleito dos EUA, Joe Biden, durante entrevista coletiva em Delaware, antes de partir para Washington
O presidente eleito dos EUA, Joe Biden, durante entrevista coletiva em Delaware, antes de partir para Washington - Chip Somodevilla - 19.jan.20/AFP

E não haveria a consolidação da grande mentira sem o endosso de canais de cabo e estações de rádio que atingem, combinados, dezenas de milhões de americanos diariamente. O aparato de mídia de ultradireita que propaga conspirações, incita violência e espalhou desinformação letal desde o começo da pandemia do coronavírus é a infraestrutura nacional que ajudou a normalizar, sob o disfarce de “conteúdo jornalístico”, o período de maior divisão no país desde a Guerra Civil, no meio do século 19.

Muito se especulou, em novembro, sobre os próximos passos de dois homens com poder extraordinário de influenciar os eleitores de Trump. Rupert Murdoch e seu filho Lachlan concentram mais poder político na história recente dos EUA do que qualquer outro líder de corporação de mídia.

O patriarca Murdoch, que faz 90 anos em março e é fundador da Fox News, passou a maior parte da pandemia isolado numa mansão na Inglaterra, mas subitamente reemergiu tomando decisões em janeiro, acima de seu filho, o presidente da empresa com sede em Nova York.

Tirou do ar o único programa assemelhado a telejornal do horário nobre da rede e inseriu novo conteúdo de opinião, sinalizando para o público que a guinada seria mais à direita ainda.

O australiano Murdoch não é um ideólogo, é um empresário que se tornou bilionário usando jornais e TVs para eleger e derrotar políticos em três continentes. Na reta final da campanha americana, ele contava com a derrota do homem que tinha ajudado a eleger, em 2016.

O que Murdoch não esperava era enfrentar concorrência, quando Trump começou a atacar a Fox por divulgar números corretos de pesquisa e da apuração de votos e explodiu na noite em que a rede foi a primeira a projetar a vitória de Biden no importante estado do Arizona.

Duas emissoras pequenas da franja ultradireitista que já cortejavam Trump investiram tudo na grande mentira sobre a eleição, a One America Network e a Newsmax (dirigida por um amigo pessoal de Trump).

Embora não tenham encostado nos números diários da Fox, que domina a média de audiência há 20 anos, a rede perdeu 20% de espectadores desde novembro, e as nanicas da direita aumentaram exponencialmente, em semanas, sua audiência diária.

Observadores da família Murdoch, cientes de que ele chama Trump de “idiota” e não vê a hora de se livrar dele, tiveram a surpresa de ver o empresário dobrar a aposta na grande mentira, em seguida à invasão do Capitólio. Alguns de seus âncoras, além de falsificar os fatos fartamente documentados em vídeo na insurreição do dia 6, continuam a repetir que a eleição é contestada.

Nenhum presidente na história moderna americana chega à Casa Branca com um desafio tão extraordinário do ecossistema da mídia conservadora ou extremista quanto Joe Biden.

Eleito durante uma grande recessão e a pior pandemia do século, Biden foi logo comparado a Franklin Roosevelt, outro democrata que herdou o país devastado pela Grande Recessão, em 1933, e implementou o New Deal, uma série de programas sociais, de infraestrutura, reformas financeiras e regulações que mais impacto tiveram no século 20. Dizem que Biden passou as últimas semanas estudando a transição entre o incompetente Herbert Hoover e o carismático Roosevelt.

A Fox, que ataca presidentes democratas há 24 anos, é produto de decisões de Ronald Reagan, o ícone conservador, cujo assessor de mídia, Roger Aisles, tornou-se o diretor fundador da Fox News e inventou o estilo combativo de jornalismo de cabo nos EUA.

No começo dos anos 1980, a FCC (Comissão Federal de Comunicações) relaxou o controle sobre o conteúdo de estações de rádio, até então dominado por assuntos de interesse público e programas religiosos. A decisão fez nascer a primeira safra de talk shows com forte tendência ultradireitista, cujo maior expoente, Rush Limbaugh, acaba de renovar o contrato de seu programa diário e se opôs, no ar, aos apelos pelo fim da violência depois da invasão do Capitólio.

Em 1987, Reagan reverteu a Fairness Doctrine, em vigor desde 1949, que impunha às redes de TV a obrigação de exibir “visões conflitantes em questões de interesse público". Quando Rupert Murdoch fundou a Fox News, em 1996, seus telejornais já estavam livres para dizer ao público, como fez no último ano, que a pandemia é um embuste, e a eleição mais limpa da história americana, segundo os próprios funcionários do governo Trump, ilegítima.

Bill Clinton foi o primeiro a enfrentar a artilharia inescrupulosa de Limbaugh e Murdoch que Hillary Clinton denunciou, com reações gerais de sarcasmo, como a “vasta conspiração de direita”.

Barack Obama enfrentou a artilharia digitalizada do “birtherismo”, com os primeiros disparos feitos pelo próprio Trump, que garantia ter enviado ao Havaí investigadores para provar que o democrata nascera no Quênia —e, portanto, não podia ser eleito presidente.

O ataque ao Congresso fez emergir um debate que estava fora do radar, uma vez que são os gigantes do Vale do Silício, como Facebook e Twitter, os considerados maiores facilitadores de conspirações, como as do grupo QAnon —e ficou claro que a insurreição de agora foi abertamente organizada nas redes sociais.

Na última semana, articulistas americanos passaram a perguntar se Biden pode e deve usar a FCC para reinar sobre a anarquia da desinformação que se tornou tão danosa à democracia. Pelas leis atuais, não há muito que ele possa fazer. A FCC não concede licenças de canais de cabo. Quem decide distribuir os canais são as grandes operadoras, como AT&T, Comcast, Charter, Dish Network e Verizon.

Com o súbito movimento de grandes corporações de suspender doações aos republicanos que votaram na Câmara e no Senado para anular a eleição, a atenção sobre as operadoras aumenta.

Acesso aos assinantes das operadoras é oxigênio para os canais. Sabe-se que os Murdochs se armaram de uma pequena tropa de advogados no começo da pandemia, temerosos de ações judiciais por disseminarem falsa informação sobre saúde pública. É impossível imaginar uma gigante como a AT&T removendo a Fox de sua grade. Mas ainda é cedo para saber como o ataque ao Capitólio pode influenciar o mercado, sob a pressão de um Congresso controlado pelos democratas.

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