Biden toma posse como 46º presidente dos EUA e defende 'verdades sobre mentiras'

Rompendo tradição de 152 anos, Donald Trump não comparece à cerimônia que reuniu mil convidados

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Da dir. para a esq., o presidente Joe Biden, a mulher, Jill, e a vice, Kamala Harris, com o marido, Doug Emhoff, na entrada do Capitólio

Da dir. para a esq., o presidente Joe Biden, a mulher, Jill, e a vice, Kamala Harris, com o marido, Doug Emhoff, na entrada do Capitólio Joe Raedle/Getty Images/AFP

Washington

Em uma cerimônia histórica, Joe Biden, 78, fez seu juramento em frente ao Congresso americano e tomou posse nesta quarta-feira (20) como o 46º presidente dos EUA, colocando fim à era de Donald Trump.

Com um discurso contundente, em uma Washington sitiada, o homem mais velho a assumir a Casa Branca em um primeiro mandato celebrou a democracia, fez um apelo à união e marcou a ruptura definitiva com o antecessor republicano ao dizer que é preciso derrotar mentiras e defender a verdade. "Aprendemos mais uma vez que a democracia é preciosa, a democracia é frágil. E, nessa hora, meus amigos, a democracia prevaleceu."

Biden, que assume um país radicalizado e severamente dividido, chamou o terrorismo doméstico pelo nome e prometeu vencer o que hoje é considerada uma das principais ameaças nos EUA.

"Precisamos acabar com essa guerra incivil. [...] As últimas semanas e meses nos ensinaram uma lição dolorosa. Existe a verdade e existem mentiras. Mentiras contadas para obter poder e lucro", afirmou Biden, em uma referência indireta a Trump, que não estava na cerimônia.

"E cada um de nós tem o dever e a responsabilidade, como cidadãos, como americanos e, especialmente, como líderes —líderes que se comprometeram a honrar nossa Constituição e a proteger nossa nação— de defender a verdade e derrotar as mentiras." (Veja a íntegra do discurso aqui.)

O democrata, segundo presidente católico na história do país, jurou sobre a Bíblia, como é tradição nos EUA, diante do presidente da Suprema Corte americana, John Roberts. Ao faltar à cerimônia, Trump se tornou o quarto presidente da história do país a não comparecer à posse do sucessor, o que não acontecia havia 152 anos —o representante do agora antigo governo foi o ex-vice-presidente Mike Pence.

Biden passa a comandar um país devastado por uma crise econômica e uma pandemia que já matou mais de 400 mil americanos —seus principais desafios nos próximos anos— e preparou um discurso para mostrar sua disposição em superar não apenas as crises mas também as desavenças políticas, ancorado na ideia de que é possível discordar no campo ideológico sem que o ódio lidere o debate.

O novo presidente lembrou do ataque ao Capitólio no dia 6 de janeiro, quando apoiadores de Trump, insuflados pelo então presidente, invadiram a sede do Legislativo para tentar impedir a certificação do resultado das eleições, numa ação violenta que deixou cinco mortos.

"Aqui estamos, apenas dias depois que uma turba pensou que poderia usar a violência para silenciar a vontade do povo, para parar o trabalho da nossa democracia, para nos tirar do solo sagrado. Não aconteceu, nunca vai acontecer. Não hoje, nem amanhã, nem nunca. Nunca", afirmou Biden.

"Este é o dia dos EUA, é o dia da democracia, um dia de história e esperança, de renovação e determinação. Os EUA foram testados, e um novo país ergueu-se perante o desafio. Hoje celebramos o triunfo não de um candidato, mas de uma causa. Da causa da democracia.​"

Antes do pronunciamento de 20 minutos de Biden, a cantora Lady Gaga interpretou o Hino Nacional americano diante de uma plateia reduzida, de cerca de mil convidados, em que todos usavam máscaras.

Cercada de simbolismos, a posse do democrata tem outra credencial inédita, com Kamala Harris assumindo o posto de primeira mulher negra como vice-presidente dos EUA. Ela vai exercer papel definitivo no que se tornou o principal desafio de Biden nos próximos anos: conseguir, de fato, governar.

Os democratas têm maioria na Câmara, mas Kamala é o voto de desempate no Senado dividido —em alguns casos, porém, é necessário o apoio de 60 dos 100 senadores para que uma medida passe sem obstrução de opositores. O democrata escolheu a vice em um aceno a dois grupos de eleitores muito importantes na disputa do ano passado, negros e mulheres, e sinalizou que, por sua idade avançada, não deve concorrer à reeleição, o que abre caminho para Kamala ser a candidata democrata em 2024.

A nova vice-presidente foi empossada por Sonia Maria Sotomayor, a primeira juíza latina da Suprema Corte dos EUA. A diversidade permeou toda a estética da cerimônia, com muitos negros na plateia, entre políticos e outros convidados, além da poeta negra Amanda Gorman, a mais jovem escritora a se apresentar numa posse presidencial, e dos cantores Garth Brooks —ídolo country de muitos republicanos—, Lady Gaga, querida entre o público LGBTQ, e a filha de porto-riquenhos Jennifer Lopez.

JLo, como é conhecida, cantou "This Land Is Our Land" (esta terra é nossa terra), clássico da música folk americana. Antes de terminar a apresentação, a cantora repetiu, em espanhol, um trecho do juramento que seria declamado por Biden minutos depois: "Uma nação sob Deus, com liberdade e justiça para todos".

Nascida na Nicarágua, Fabiola Cardenas, 66, viajou de Boston a Washington para ficar apenas oito horas na capital dos EUA. Ela sabia que o esquema de segurança, que contava com barreiras físicas e de milhares de homens armados, não a deixaria ver Biden nem mesmo de longe, mas se posicionou em uma das ruas nas cercanias do Congresso. "É histórico, eu precisava ver isso desse chão."

Fabiola está há 25 anos nos EUA e disse que a vida de todos os imigrantes vai mudar com a chegada do democrata, que não tem a abordagem racista de Trump. "É o começo de uma nova era, estou aliviada."

Ainda nesta quarta, Biden pretendia assinar 17 ordens executivas para marcar a mudança de direção de seu governo em relação à gestão Trump, inclusive em questões de imigração, afastando-se do populismo autoritário e revendo diversas medidas impostas pelo republicano nos últimos quatro anos.

No mesmo espírito de estimular "a cura" de um país dividido, como fez durante toda a campanha eleitoral, Biden usou grande parte de seu discurso para clamar aos americanos que fiquem juntos, e não separados.

"A história americana não depende de um de nós, mas de todos nós. Nós, o povo, buscamos uma união perfeita", afirmou o presidente. "Devemos acabar com esta guerra incivil que opõe o vermelho ao azul, o rural ao urbano, o conservador ao progressista. Podemos fazer isso se abrirmos nossas almas em vez de endurecer nossos corações."

De saída, Biden quer colocar os EUA de volta à OMS (Organização Mundial da Saúde) e ao Acordo Climático de Paris. Promete também vacinar 100 milhões de americanos contra a Covid-19 em 100 dias e aprovar o plano de recuperação econômica no valor de US$ 1,9 trilhão (cerca de R$ 10 trilhões).

O montante inclui US$ 400 bilhões (R$ 2,1 bilhões) para o combate ao vírus, além de pagamento direto aos americanos, auxílio a desempregados, pequenas empresas e a estados e municípios.

Biden também quer suspender o banimento de entrada nos EUA a viajantes de alguns países de maioria muçulmana, parar a construção do muro na divisa com o México, símbolo inacabado do governo Trump, impedir a separação de famílias na fronteira e abrir caminho para que milhões de pessoas que vivem nos EUA sem documento tenham cidadania americana.

Depois do juramento e posse, Biden passou as guardas em revista, num gesto que busca sinalizar a transição pacífica de poder para o novo comandante-chefe, e visitou, ao lado de outros ex-presidentes americanos —Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama—, o Cemitério de Arlinton, em uma homenagem ao Soldado Desconhecido, memorial a militares sem identificação mortos em combate.

Desta vez, uma grande parada na avenida Pensilvânia, em Washington, e o baile de inauguração, tradicionais da posse, foram substituídos por eventos virtuais ou transmitidos ao vivo pela TV.

Na política há 48 anos, como vereador, senador e vice-presidente nos dois mandatos de Barack Obama, Biden sabe que terá de lançar mão de seu perfil moderado e sua conhecida habilidade conciliatória para negociar com os dois lados do tabuleiro em meio à radicalização insuflada por Trump.

Ao contrário do clima festivo das posses presidenciais americanas, a cerimônia desta quarta foi marcada pela segurança sem precedentes e atos simbólicos, devido às restrições impostas pela pandemia e às ameaças de protestos e atos violentos contra a inauguração do democrata.

Cerca de 200 mil bandeiras dos EUA foram colocadas no National Mall, onde geralmente o público espera para ver o novo presidente, para representar os americanos que não puderam ir ao evento. A ordem das autoridades era para que os americanos não saíssem de casa e acompanhassem tudo pela TV.

Desde 6 de janeiro, quando apoiadores de Trump invadiram o Congresso para tentar impedir a certificação da vitória de Biden, Washington está sitiada e assistiu à chegada de 25 mil soldados da Guarda Nacional. O contingente é maior do que as tropas americanas no Afeganistão, no Iraque e na Síria juntas e foi capaz de mudar completamente o clima e a rotina da cidade.

Na véspera da posse, 12 agentes da Guarda Nacional foram afastados do esquema de segurança da cerimônia após investigações do FBI identificarem ligações de ao menos dois deles com grupos de extrema direita —sentimento que tem crescido nas fileiras das Forças Armadas americanas.

A região central, onde ficam o Congresso, a Casa Branca e os principais pontos turísticos de Washington, virou uma zona militarizada, bloqueada por veículos militares e rifles que dividem espaço com quem vive nas cercanias. Moradores e pessoas autorizadas precisam se identificar aos agentes antes de cruzar ruas, e cada espaço tem sido monitorado pela maciça operação coordenada pelo Serviço Secreto.

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