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Com crescente autoridade, mulheres ganham espaço pregando o islã na internet

Richard Nielsen, pesquisador do MIT, rastreia debates religiosos em sites conservadores

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Washington

Na internet, Ruqayyah bint Muhammad al-Muharib responde perguntas sobre o islã. Ela escreve sobre temas variados como corrupção, peregrinação, terrorismo e o dia dos namorados. Cita trechos do Corão, o livro sagrado. Dá sua opinião e faz recomendações.

Mulheres como Muharib têm ganhado espaço no debate religioso online dentro do salafismo, um movimento islâmico conservador. É um novo fenômeno —e algo que pesquisadores não esperavam ver.

Essas pregadoras atuam em sites religiosos como Alukah e Sayid al-Fawaid, por onde passam milhões de usuários. Disputam essa audiência com homens que também escrevem sobre o islã.

mulheres com burca dentro de uma sala de aula
Meninas estudam em um internato islâmico na Indonésia - Minzayar Oo - 26.nov.2019/The New York Times

“Quando encontrei mulheres pregando com autoridade nesses sites, fiquei bastante surpreso e quis saber mais”, diz o cientista político Richard Nielsen, que leciona no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Ele recentemente publicou um estudo sobre esse tema, como parte de seu projeto mais amplo de entender o impacto da internet na autoridade religiosa.

Não é que as mulheres não tenham nem nunca tenham tido autoridade no islã. Há exemplos históricos e contemporâneos disso. A novidade são a escala e o crescimento. É novo, também, que os homens interajam com elas —com comentários e curtidas nas redes sociais.

Uma das explicações para esse fenômeno, diz Nielsen, é simples: a internet tem cada vez mais penetração nos países de maioria muçulmana. Além disso, em um momento como este, de pandemia, uma grande parte dos rituais das mesquitas migraram para plataformas virtuais.

Mas o que parece ainda mais particular é que, na internet, as mulheres conseguem escapar das restrições à mistura entre os sexos. Em vertentes conservadoras como o salafismo, existe pouquíssima interação. É improvável que um homem se sente para ouvir uma mulher desconhecida falar sobre religião em um país como a Arábia Saudita, diz Nielsen.

Nas redes, por outro lado, é possível ler todos os textos de uma pregadora e comentar um a um sem o receio de romper um tabu ou de ser alvo da censura da sociedade. “A internet oferece um anonimato que não existia”, Nielsen diz. Muitos desses homens, aliás, elogiam o trabalho dessas pregadoras em seus comentários nas redes.

Um outro fator interessante, ele afirma, é que as mulheres são mais versadas na linguagem da internet e entendem melhor como usar suas ferramentas. Nos sites salafistas que Nielsen estudou, elas respondem mais aos comentários de seus seguidores, em comparação com o que pregadores masculinos fazem. Interagem, ganham fôlego.

Ainda se sabe pouco sobre a biografia dessas mulheres. Muitas delas, inclusive, não mostram o rosto nem usam seus nomes verdadeiros. Mas algo que Nielsen sabe é que metade das mulheres que ele pesquisa têm um doutorado em ciências islâmicas. Isso reflete o crescimento do ensino superior entre mulheres em países como a Arábia Saudita, um dos centros de doutrina salafista. Nielsen também notou que diversas delas vêm de famílias influentes, de onde saíram outros clérigos.

Essas mulheres pregam, em geral, sobre temas considerados “femininos” em suas sociedades. Elas escrevem sobre menstruação, educação e filhos. “Mas o que é surpreendente mesmo é que elas também pregam sobre outros tópicos”, diz Nielsen. Por exemplo, uma mulher da família Al al-Sheikh escreveu um texto sobre o terrorismo e como ele afeta o restante da comunidade islâmica.

Retrato do cientista político Richard Nielsen, que leciona no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) - MIT/divulgação

Nielsen fala com cautela sobre esses exemplos porque reconhece que, apesar das transformações que ele vê na internet, ainda há limites claros para a atividade das mulheres online. Nenhuma delas tem o mesmo alcance, por exemplo, dos clérigos-celebridades que hoje falam a milhões de seguidores. Seguem às margens, nesse sentido.

Outra barreira é que as mulheres que escrevem nos sites estudados por Nielsen foram recrutadas para tal função. Não se trata de uma insurgência, de um movimento de baixo para cima. O topo da hierarquia religiosa de certa maneira as colocou naquela posição de poder —o que em si já é um tipo de filtro. Ainda assim, o conteúdo que elas escrevem não está sob censura total. E, nas caixas de comentário, elas retrucam quando homens as “corrigem”. Insistem que sabem do que estão falando.

Um último alerta que Nielsen faz em seu artigo —e que ele repete na entrevista— é que essas mulheres não têm uma agenda feminista explícita. Não vão à internet pedir o fim do patriarcado nem exigem a igualdade entre os sexos. Na verdade, elas se posicionam de modo contrário ao que alguém nos Estados Unidos ou no Brasil entende por feminismo. Isso não quer dizer, porém, que a atividade delas não tenha um impacto nas suas sociedades.

“O empoderamento de mulheres é sempre político. Mesmo quando entram em um espaço dizendo que não estão fazendo política, elas estão transformando a política daquele espaço”, afirma. Essas pregadoras online, afinal, podem estar mudando —ainda que pouco a pouco— a ideia que se tem da autoridade política das mulheres no islã. Com isso, abrem caminho para novos debates.

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