Companheiro de Mujica na prisão, escritor lembra cárcere durante a ditadura uruguaia

Mauricio Rosencof conta como lidou com a solidão, o medo da loucura e o temor pelos familiares em 12 anos de cativeiro

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Buenos Aires

Mauricio Rosencof, 87, atende o telefone e diz que está "mateando" —ou seja, tomando mate, como um típico uruguaio—, para a conversa com a Folha.

O escritor e ex-preso político conta que isso é algo que ele e Eleuterio Fernández Huidobro (1942-2016, ex-ministro da Defesa) fizeram durante várias tardes entre 1986 e 1987, diante de um gravador, nessa mesma casa em que está agora, na costa do Uruguai.

Mauricio Rosencof, dramaturgo, poeta e jornalista uruguaio, foi companheiro de prisão de José 'Pepe' Mujica durante a ditadura uruguaia
Mauricio Rosencof, dramaturgo, poeta e jornalista uruguaio, foi companheiro de prisão de José 'Pepe' Mujica durante a ditadura uruguaia - Reprodução TVT no YouTube

Naquele período, os dois ex-integrantes do grupo guerrilheiro de esquerda Tupamaro registraram praticamente tudo o que lembraram sobre os 12 anos que passaram presos durante a ditadura militar uruguaia (1973-1985).

Depois, mandaram o que tinham registrado ao terceiro companheiro que ficou confinado com eles, o agora ex-presidente José "Pepe" Mujica, que não participou das gravações porque estava ocupado em sua atividade política.

Mujica leu e fez observações. Os outros dois então finalizaram "Memórias do Calabouço", que agora sai no Brasil pela editora Rua do Sabão (R$ 55, 300 págs.).

A obra deu origem ao filme "Uma Noite de 12 Anos", dirigido por Álvaro Brechner, em 2018, que conta como os três amigos tupamaros enfrentaram o longo período de cativeiro.

Mateando e bem-humorado, Rosencof concedeu a seguinte entrevista à Folha.

Como é para senhor hoje revisitar agora esse livro escrito em 1987, ainda com a experiência da prisão muito recente? Confesso um segredo. Nunca reli o livro desde então. As imagens e as memórias estão ainda demasiado vivas para que eu tenha que recorrer ao livro para me lembrar delas. E também porque reler é sempre perturbador.

Com o filme ocorreu a mesma coisa? Também perturbou, embora eu tenha visto mais vezes. Mujica viu uma só. Na primeira vez, assistimos juntos. E ao final da sessão, nos perguntamos o que tínhamos achado. Mujica me disse: "Está muito bem, mas não quero ver nunca mais".

O que incomoda mais, especificamente? Ver nossas famílias e lembrar do quanto sofreram. Não é tanto a tortura, a dor física. Tanto que, quando perguntei a Mujica por que não queria ver o filme de novo, ele disse: "Minha mãe está ali". Eu tentei quebrar o clima e disse: "Eu sei, Pepe, é duro assistir. Mas ainda assim é melhor assistir do que viver tudo de novo".

Vocês contam no livro esses episódios. Seu pai não te reconhecendo, filhos que choravam. Ao mesmo tempo, escrevem que havia grande expectativa das visitas familiares. Claro, era a única perspectiva que tínhamos. A cada um, dois meses, saber se nossos familiares iriam conseguir chegar para nos visitar, muitas vezes por apenas dez minutos. E os militares sabiam disso, por isso dificultavam tudo. Nesses 12 anos, ficamos presos em diversas prisões pelo país.

Nos levaram a quartéis e prisões em diferentes cantos do Uruguai. Não parece muito por ser um país pequeno. Mas nossos familiares eram humildes, trabalhadores. Esses deslocamentos para fazer as visitas eram caros, longos, difíceis. Além do que, mais de uma vez, algum familiar nosso ficou horas e horas do lado de fora esperando, até ser informado de que tínhamos sido transferidos. Para um filho, saber que sua mãe passou por isso é pior que a tortura. Por isso digo que, quando nos prendiam e torturavam, estavam fazendo isso com a família inteira.

Uma vez que é tão doloroso recordar, por que decidiram, praticamente recém-saídos do cativeiro, gravar essa conversa que virou o livro e o filme? Porque é como uma extensão da militância que fazíamos e na qual atuamos contra o autoritarismo a vida toda. Deixar registro do que nos aconteceu era uma tarefa nossa em nome de todos, todos os companheiros que também ficaram presos, os que morreram. É a nossa contribuição, nosso tijolo para a construção do necessário muro da memória.

Vocês passaram a se comunicar batendo repetidamente nas paredes, numa espécie de código Morse adaptado à prisão. Pode descrever a emoção desse momento? A partir daí mudou tudo. Quando você não tem nada e a solidão é completa, o medo de ficar louco te preocupa o dia inteiro, até você imaginar que de fato está louco. Passamos muito tempo sabendo que estávamos em celas contíguas, mas não podíamos falar nada, não podíamos nem fazer barulho. Até para bater na pedra, quando inventamos esse jeito de nos comunicar, tinha que ser escondido, porque nos vigiavam.

Mas quando conseguimos começar a conversar, primeiro frases curtas, mas, depois que pegamos prática, longas conversas, mudou tudo. Mudou o modo como passamos os dias, voltamos a sonhar outra vez com nossos planos. Mas tínhamos que tomar muitas precauções. Porque criamos calos nos dedos, por exemplo, e escondíamos a mão dos vigias para que não descobrissem como funcionava nosso meio de comunicação.

​​Mujica e Huidobro tomaram o caminho da política. Por que você escolheu um caminho diferente? Eu não considero ter saído da política. Eles entraram para a política partidária, mas eu continuei atuando politicamente em meus livros, nos roteiros de cinema, no teatro. Toda minha obra é política. Na cadeia, eu tinha ideias que tentava guardar para usar depois. Tenho obras de teatro baseadas em ideias que tive e consegui registrar em papel de maço de cigarro para reviver depois.

Não considero que meu caminho tenha sido menos político que o deles, apenas não quis entrar no jogo partidário, nas disputas. Algo que a Pepe e a Huidobro fizeram muito bem.

Num belo livro seu, "Las Cartas que Nunca Llegaron" (2000), você conta sua infância como filho de imigrantes que fugiram do Holocausto. Também se trata de um filho escrevendo desde o calabouço. Sim, tive essa ideia naqueles anos também. Porque são essas as coisas que surgem em nossa mente quando estamos sozinhos por muito tempo. Não escrevi essa história na prisão, porque não tinha onde escrever. Mas você pensa, repassa sua vida. Pensa muito nos seus pais, no caminho que levou você a ter ido parar lá. E "Las Cartas que Nunca Llegaron" é isso, a história da minha família, que foi das últimas a sair da cidade em que viviam antes que chegassem os nazistas. As cartas dos parentes chegavam para os meus pais, até que deixaram de chegar. Isso marcou muito a minha infância.

E isso está relacionado com o livro que você está escrevendo agora, não é? Sim, estou trabalhando num livro que deve se chamar "La Caja de Zapatos" (a caixa de sapatos). É uma coisa que não se usa mais, mas creio que todos se lembram do uso comum que se fazia das caixas de sapatos para guardar fotos e cartas de famílias, de amigos. Na minha família era assim, conheci meus avós por meio de fotos que minha mãe guardava em caixas de sapatos.

E, ao mesmo tempo, quando estamos presos, desejamos isso, ter algo, qualquer coisa que te lembre quem você é, e guardar essas coisas numa caixa de sapatos. Porque uma das coisas cruéis que fazem com você quando prendem é impedir que você tenha qualquer coisa.


Raio-x

Mauricio Rosencof, 87

Filho de judeus poloneses, nasceu em Florida, no Uruguai, em 1933. Escritor, dramaturgo, poeta e jornalista, publicou mais de 20 obras. Foi fundador da União das Juventudes Comunistas e depois dirigente do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros. Em 1972, foi preso e torturado. No ano seguinte, foi declarado "refém" pelo governo e ficou detido até 1985. Em 2005, foi nomeado diretor de Cultura da cidade de Montevidéu, cargo que deixou alguns anos depois.

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