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Equador, Argentina e Bolívia: a tentação da liderança delegada

A delegação da autoridade presidencial está gerando mais problemas do que esse mesmo ato quis evitar

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Diego M. Raus

Diretor da licenciatura em Ciência Política e Governo da Universidade Nacional de Lanús (Argentina) e professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires

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O ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso é creditado, em uma reportagem de jornal, com a frase que, a nível governamental, se pode transferir o poder e o cargo, mas não se pode transferir a autoridade.

É de imaginar que Cardoso se referia ao fato de que os governos estão legitimados em sua capacidade de comandar, de tomar decisões e, finalmente, à eficácia dessas decisões. E parte dessa eficácia tem a ver com o exercício da autoridade e o consenso majoritário sobre esse exercício.

Bem, nos últimos dois anos vimos governos da região que emergiram de uma transferência de poder e de cargo, mas não de autoridade. A pergunta conseguinte é se essa modalidade de governo é eficaz para fornecer respostas políticas e se essa eficácia implica a construção de um consenso social.

Nas eleições de 2017 no Equador, a candidatura do partido governista PAIS foi liderada pelo ex-vice-presidente de Rafael Correa, Lenin Moreno.

Embora o líder indiscutível dessa força política fosse Correa, que havia liderado dois governos consecutivos (2007-2017) com múltiplas reformas progressistas, a fim de não alterar a estrutura institucional forçando uma reforma constitucional que lhe permitiria concorrer por uma terceira vez, ele transferiu sua candidatura para Moreno.

O presidente do Equador, Lenin Moreno, fala durante evento em Quito
O presidente do Equador, Lenin Moreno, durante evento em Quito - Cristina Vega Rhor - 8.dez.2020/AFP

Moreno ganhou a Presidência do Equador e tomou posse em 2018. As políticas e reformas do período anterior foram salvaguardadas.

Em 2019, na Argentina, devido à crise econômica causada por importantes erros cometidos pela gestão do “Cambiemos” na figura presidencial de Mauricio Macri, a oposição peronista, que se tornou a maioria no kirchnerismo, viu uma oportunidade de recuperar o poder.

Mas em um tabuleiro de xadrez político que os analistas e a mídia tinham sintetizado como: "Com Cristina não alcança, sem Cristina não se pode". Ou seja, a candidatura direta de Cristina Fernández de Kirchner gerou rejeições importantes no nível eleitoral, mas sem o kirchnerismo era impossível recuperar o poder.

Em uma atitude hábil, a ex-presidente entregou a candidatura presidencial a Alberto Fernández, ex-chefe de gabinete na primeira etapa do kirchnerismo, logo um forte oponente. E Fernández, o candidato do “Frente de Todos”, venceu as eleições de 2019.

Em 2015, na Bolívia, o presidente Evo Morales, constitucionalmente inibido de concorrer novamente em 2019, forçou um referendo nacional que se opôs a ele por pouco.

Diante dessa situação, ele pressionou o Tribunal Eleitoral, que decidiu que inibir uma nova candidatura de Morales constituiria uma violação de seu direito humano de concorrer.

Essa situação polarizou o país, envolvendo fortes protestos nas eleições de outubro de 2019, quando o Tribunal Eleitoral certificou a vitória de Morales.

O corolário desses violentos protestos foi a saída de Morales do país, uma presidência transitória liderada pela oposição ao MAS, e as eleições de 2020.

Contra todas as probabilidades, o MAS triunfou confortavelmente, mas Morales teve que delegar sua candidatura a seu ex-ministro da economia Luis Arce.

Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, usa máscara de proteção contra o coronavírus
Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, quando estava em Buenos Aires - Emiliano Lasalvia - 3.nov.2020/AFP

Desde o início de 2019, Lenin Moreno, já aliado ao establishment econômico do Equador e, portanto, tendo rompido laços com o correismo, a ponto de processar o ex-presidente por corrupção, entrou em negociações com o FMI.

Impulsionado pela organização multilateral, em outubro daquele ano o presidente anunciou um pacote de reformas econômicas de natureza neoliberal que desencadeou violentos protestos populares em todo o país.

A possibilidade de sufocar esse protesto residiu em recuar em algumas das medidas do pacote e repensar os acordos com o FMI. Uma situação e a outra quebrararam definitivamente a capacidade presidencial, tanto para seus novos aliados quanto para as bases correistas.

A fraqueza do governo de Moreno o impede de ter sua própria agenda, o que só o ano pandêmico conseguiu esconder.

O início do mandato presidencial de Fernández na Argentina (ele tomou posse em dezembro de 2019) foi marcado pelo início da pandemia.

Mas após metade do ano, e em um contexto de crise econômica e social aumentada pela pandemia, o país passou por várias situações de decisões políticas do governo que foram imediatamente modificadas.

Os analistas e a mídia concordam que essas mudanças ocorreram devido aos "vetos" da vice-presidente Cristina. Da mesma forma, em declarações jornalísticas sobre situações emanadas de governos kirchneristas anteriores, o presidente declarou coisas que ele havia condenado anteriormente.

Até hoje, o presidente tem articulado uma oposição que foi derrotada há um ano, antagonizando-a com grupos de poder decisivos, ao mesmo tempo em que não significa o reconhecimento do kirchnerismo. Sua imagem como presidente despencou nos últimos três meses.

Na Bolívia, Arce assumiu a presidência no final de 2020. Morales, exilado na Argentina, retornou triunfantemente ao país, prometendo não interferir nas decisões do novo governo do MAS.

Entretanto, nos últimos dias e com a iminência das eleições departamentais e municipais, a estrutura política do MAS começou a se dividir diante, segundo o governo, da decisão centralizada e irrecorrível de Morales na preparação das listas do governo.

O rumo de um governo recentemente assumido, assombrado pela oposição muito forte de todos os fatores de poder, é incerto.

O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso gesticula em entrevista
O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso - Bruno Santos - 16.out.2019/Folhapress

Voltemos à frase de Cardoso.

A América Latina, uma região sempre em turbulência e onde as mudanças políticas são sempre mobilizadoras, perturbadoras do status quo e geralmente conflitantes, tem a particularidade de oferecer certos denominadores comuns entre seus países, além dos problemas específicos de cada um deles.

É possível afirmar que essa questão de poder delegado, por qualquer razão em cada país, não é exclusiva de nenhum país-situação.

E também pode ser afirmado –a evidência da situação atual está provando– que em uma região onde a liderança forte sempre foi a moeda política mais valiosa, a delegação da autoridade presidencial está gerando mais problemas do que esse mesmo ato de delegação quis evitar.

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Tradução de Maria Isabel Santos Lima

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