Invasão do Capitólio joga luz sobre a mentalidade apocalíptica da extrema direita global

Relação entre grupos radicais nos EUA e na Europa tem aumentado nos últimos anos

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Katrin Bennhold Michael Schwirtz
Berlim | The New York Times

Quando insurgentes invadiram o Capitólio (sede do Congresso americano) em Washington este mês, extremistas de direita do outro lado do Atlântico aplaudiram.

Jürgen Elsässer, editor da mais conhecida revista alemã de extrema direita, acompanhou o motim ao vivo de seu sofá. “Assistimos a tudo como se fosse um jogo de futebol”, ele disse.

Quatro meses antes, Elsässer participara de uma passeata em Berlim onde uma multidão de manifestantes de extrema direita tentou, mas não conseguiu, invadir a sede do Parlamento alemão à força. O paralelo chamou sua atenção.

“O fato de eles terem conseguido penetrar o edifício nos deu a esperança de que havia um plano”, ele comentou. “Ficou claro que era algo de dimensões muito maiores.”

E é. Seguidores de movimentos racistas de extrema direita em todo o mundo compartilham mais do que uma causa comum. Extremistas alemães viajam aos Estados Unidos para participar de provas de tiro. Neonazistas americanos visitam seus colegas na Europa. Militantes de diferentes países fortalecem seus laços em campos de treinamento que vão da Rússia e Ucrânia à África do Sul.

Há anos extremistas de direita vem fazendo intercâmbios de ideologia e inspiração às margens da sociedade e nos cantos mais profundos da internet. Agora os acontecimentos de 6 de janeiro no Capitólio americano deixaram seu potencial violento em plena vista.

Em discussões em suas redes online, muitos descartaram a invasão do Capitólio como mera trapalhada de amadores.

Alguns ecoaram falsidades veiculadas por canais ligados a teoria da conspiração QAnon nos Estados Unidos, alegando que o motim foi arquitetado pela esquerda para justificar uma repressão aos partidários do presidente Donald Trump. Mas muitos outros enxergaram a invasão do Capitólio como uma lição –algo que os mostrou como avançar e levar adiante de maneiras mais coordenadas e concretas sua meta de derrubar governos democráticos.

É uma ameaça que autoridades de inteligência, especialmente na Alemanha, levam muito a sério, tanto que imediatamente após a violência nos EUA as autoridades alemãs reforçaram a segurança em volta da sede do Parlamento em Berlim, que manifestantes de extrema direita tentaram invadir à força em 29 de agosto, muitos deles agitando os mesmos símbolos e bandeiras que os insurgentes em Washington.

O presidente Joe Biden encomendou uma avaliação ampla do perigo representado pelo extremismo doméstico violento nos Estados Unidos.

Autoridades alemãs disseram que até agora não foram detectados plenos concretos de ataques na Alemanha. Mas algumas temem que as consequências do que aconteceu em 6 de janeiro tenham o potencial de radicalizar a extrema direita europeia ainda mais.

“A extrema direita radical, os céticos do coronavírus e os neonazistas estão agitados”, comentou Stephan Kramer, diretor de inteligência doméstica no Estado de Turíngia, no leste da Alemanha.

Há um misto perigoso de entusiasmo com o fato de os insurgentes nos EUA terem avançado tanto e frustração porque isso não chegou a desencadear uma guerra civil ou golpe de Estado, disse Kramer.

Encontros online e cara a cara

É difícil saber exatamente quão profundos e duradouros são os vínculos entre a extrema direita americana e sua contraparte europeia. Mas autoridades encaram com preocupação crescente a rede de vínculos internacionais difusos e temem que as redes, que já se sentiram fortalecidas na era Trump, estejam ainda mais determinadas desde 6 de janeiro.

Um relatório recente encomendado pelo Ministério de Relações Exteriores alemão descreve “um novo movimento extremista de direita, transnacional, violento, de viés apocalíptico e que atua sem líder” que emergiu nos últimos dez anos.

Os extremistas se inspiram nas mesmas teorias conspiratórios e narrativas sobre “genocídio branco” e “a grande substituição” de populações europeias por imigrantes, concluiu o relatório. Eles transitam pelos mesmos espaços online e se encontram em festivais de música de extrema direita, eventos de MMA e manifestações públicas de extrema direita.

“Os cenários neonazistas estão bem conectados”, disse Kramer, o oficial de inteligência alemão. “Não estamos falando apenas de ‘likes’ no Facebook. Estamos falando de neonazistas viajando, de encontros e celebrações entre eles.”

Os campos de treinamento preocupam as autoridades de inteligência e policiais; elas receiam que esse tipo de atividade possa criar uma base para violência mais organizada e deliberada.

Dois nacionalistas brancos que passaram algum tempo em um campo paramilitar do Movimento Imperial Russo, extremista, nos arredores de São Petersburgo, foram acusados mais tarde por promotores suecos de arquitetar atentados a bomba contra candidatos a asilo no país.

No ano passado o Departamento de Estado dos EUA qualificou o Movimento Imperial Russo como organização terrorista. É o primeiro grupo nacionalista branco a ter recebido essa classificação.

Em 2019 o diretor do FBI (a polícia federal americana), Christopher Wray, avisou que supremacistas brancos americanos vêm saindo do país para treinar com grupos nacionalistas estrangeiros. Um relatório do mesmo ano do think tank Soufan Center concluiu que até 17 mil pessoas de outros países, muitas delas nacionalistas brancas, viajaram à Ucrânia para combater de ambos os lados do conflito separatista. A maioria era formada por russos, mas houve várias dezenas de americanos entre eles.

Às vezes os extremistas de direita se inspiram mutuamente para matar.

Os manifestos carregados de ódio de Anders Breivik, que massacrou 77 pessoas na Noruega em 2011, e de Dylann Roof, supremacista branco americano que quatro anos mais tarde matou nove fiéis negros na Carolina do Norte, influenciaram Brenton Harrison Tarrant, que em 2019 transmitiu por livestream seu massacre de mais de 50 muçulmanos em Christchurch, Nova Zelândia.

Intitulado “A Grande Substituição”, o manifesto de Tarrant, por sua vez, inspirou Patrick Crusius, que matou 22 pessoas em El Paso, no Texas, além de um atirador norueguês que foi dominado quando tentou disparar contra pessoas numa mesquita em Oslo, na Noruega.

Muitos extremistas de direita imediatamente interpretaram o que ocorreu em 6 de janeiro tanto como uma vitória simbólica quanto como uma derrota estratégica que deve lhes servir de aprendizado.

Elsässer, editor da revista “Compact”, que a agência de inteligência doméstica alemã classifica como extremista, descreveu a invasão do Capitólio como “uma tentativa honrada” que fracassou por planejamento insuficiente.

“A invasão de um Parlamento por manifestantes como início de uma revolução pode funcionar”, escreveu no dia seguinte à invasão. “Mas uma revolução só pode ser bem-sucedida se for organizada. Na hora H, quando você quer derrubar um regime, precisa de um plano e de uma espécie de estado-maior.”

Entre aqueles que se sentiram incentivados pela mobilização vista em 6 de janeiro está Martin Sellner, líder austríaco do movimento de extrema direita europeu Geração Identidade, que prega a não-violência mas vem popularizando ideias como “a grande substituição”.

Após a invasão do Capitólio, Sellner escreveu: “A raiva, a pressão e o ânimo revolucionário entre os patriotas é em princípio um potencial positivo. Apesar de ter se dissipado inutilmente na invasão do Capitólio, deixando para trás nada além de alguns memes e vídeos virais, seria possível formar a partir disso uma estratégia organizada e planejada para uma resistência mais efetiva”.

Com seus vínculos estreitos com ativistas em toda a Europa e os Estados Unidos, Sellner, que disse em entrevista que Trump será ainda mais dinamizador na oposição, encarna o alcance de um movimento cada vez mais global. Ele é casado com Brittany Pettibone, uma youtuber americana da direita alternativa que já entrevistou extremistas europeus conhecidos como o nacionalista britânico Tommy Robinson.

Influência crescente na Alemanha

Vários membros dos Proud Boys, a quem Trump, em frase que ficaria famosa, mandou “recuar e ficar de prontidão”, estiveram entre os insurgentes que invadiram o Capitólio.

No dia 19 de outubro os Proud Boys compartilharam em um de seus grupos no Telegram que nos últimos meses haviam visto “um aumento enorme no apoio que estamos tendo da Alemanha”.

“Uma alta porcentagem de nossos vídeos está sendo compartilhada na Alemanha”, dizia uma mensagem no grupo do Telegram que também foi traduzida ao alemão. “Apreciamos esse apoio e estamos rezando por seu país. Somos solidários com os nacionalistas alemães que não querem ver migrantes destruindo seu país.”

E, do mesmo modo como a América exporta teorias conspiratórias do QAnon para a outra margem do Atlântico, desinformação e teorias conspiratórias da Europa também vêm chegando aos Estados Unidos.

Dias após a eleição americana, seguidores do QAnon na Alemanha estavam disseminando desinformação que, disseram, provava que a eleição tinha sido fraudada a partir de um banco de servidores operados pela CIA (agência de inteligência dos EUA) e localizado em Frankfurt —apesar de milhões de votos terem sido depositados em papel e enviados pelos correios.

A desinformação, que o pesquisador alemão Josef Holnburger identificou como tendo se originado de uma conta em idioma alemão, foi reproduzida por pelo menos uma sucursal local da Alternativa para a Alemanha, partido político de direita radical conhecido por sua sigla em alemão, AfD.

Ela também acabou sendo destacada pelo deputado americano Louie Gohmert e pelo aliado de Trump Rudy Giuliani, ex-prefeito de Nova York. A partir deles, ela viralizou. Segundo Holnburger, foi a primeira vez que isso aconteceu com uma teoria conspiratória alemã do QAnon nos Estados Unidos.

Segundo Miro Ditrich, especialista em redes extremistas de direita, os laços transnacionais funcionam mais como inspiração que como ajuda organizacional. “Não se trata tanto de forjar um plano concreto quanto de criar um potencial violento”, ele disse.

Mas especialistas continuam céticos quanto ao potencial de serem forjadas relações transatlânticas mais duradouras entre grupos da extrema direita. Para Anton Shekhovtsov, da Universidade de Viena e especialista na extrema direita europeia, quase todas essas tentativas feitas desde a Segunda Guerra Mundial fracassaram.

Expectativas diferentes

Há até uma divergência de opinião entre seguidores da extrema direita quanto ao valor ou a viabilidade dessas alianças. Para muitos, a ideia de um movimento nacionalista internacional encerra uma contradição inerente.

“Há um clima comum e uma troca de ideias, memes e logotipos”, disse Sellner, o ativista de extrema direita austríaco. “Mas os campos políticos na Europa e nos EUA são muito diferentes.”

Rinaldo Nazzaro, fundador do grupo nacionalista branco internacional The Base, hoje vive em exílio autoimposto em São Petersburgo, Rússia, mas disse que não tem interesse em forjar laços com grupos nacionalistas russos.

“Os nacionalistas na América precisam fazer o trabalho pesado sozinhos”, disse. “O apoio externo só pode ser complementar, na melhor das hipóteses.”

Tradução de Clara Allain 

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