Invasão nos EUA foi alerta para redefinir liberdade de expressão, diz pesquisadora

Jane Suiter, líder de projetos contra desinformação na Irlanda, diz que EUA devem responsabilizar plataformas que difundam discurso de ódio

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Bruxelas

“Trump pode subir num caixote no meio de um parque em Nova York e dizer o que quiser. Mas, se for estímulo ao ódio racial, ao motim ou à insurreição —o que é ilegal—, quem estiver carregando essa mensagem tem que ser responsabilizado”, diz a cientista política Jane Suiter, diretora do Instituto para a Mídia e o Jornalismo do Futuro e professora da Universidade de Dublin.

Especialista em desinformação e democracia, Suiter foi premiada como pesquisadora do ano de 2020 pelo Conselho Irlandês de Pesquisa, devido a análises das mensagens populistas e de sistemas de comunicação que as apoiam ou dificultam.

Para ela, a invasão do Congresso americano —insuflada por Donald Trump nas redes sociais— foi um alerta de que os EUA têm que rever seus conceitos de liberdade de expressão e discutir uma regulação das plataformas digitais, na direção da que tem sido adotada na Europa.

“Acredito que os legisladores já começaram a pensar nisso quando a polícia precisou entrar no Congresso para protegê-los”, afirma a professora, que lidera projetos de combate à desinformação.

A responsabilidade é também do jornalismo profissional, diz Suiter, e os países que quiserem proteger suas democracias terão que redesenhar instituições e comunicação. “Temos que fazer as pessoas perceberem como os autoritários manipulam as emoções, para que possam reconhecer quando estiverem sendo os alvos.”

Apoiadores de Trump na praça da Liberdade, em frente ao Congresso americano, em protesto contra a certificação da vitória de Joe Biden
Apoiadores de Trump na praça da Liberdade, em frente ao Congresso americano, em protesto contra a certificação da vitória de Joe Biden - Jim Urquhart - 5.jan.2020/Reuters

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Quanto da invasão do Congresso americano pode ser creditado ao uso que Trump faz das redes sociais? Certamente as mídias sociais têm um papel grande na desinformação e na difusão de mentiras. Trump tem 89 milhões de seguidores no Twitter e 35 milhões no Facebook, com os quais pode falar diretamente, sem passar por nenhum filtro. Pode jogar como quiser, incitar turbas, dizer o que quiser.

E as redes permitem que se criem câmaras de eco. As pessoas vivem nesses ambientes em que tudo o que veem são mentiras, e isso ajuda muito a espalhá-las. Os apoiadores de Trump realmente acreditam que as eleições foram roubadas, por exemplo. Mas não se trata apenas da mídia social. A mídia tradicional tem grande responsabilidade. Veja a Fox News, cujos âncoras passam o dia repetindo mentiras e desinformações. Nesta quinta [7], eles estão afirmando que quem invadiu o Congresso foram antifascistas disfarçados de apoiadores de Trump.

Não é só a mídia social, mas é óbvio que eles deveriam ter feito muito mais nos últimos cinco anos para parar Trump. Agora eles bloquearam as contas do presidente, impediram comentários e compartilhamentos. Isso poderia ter sido feito muito antes, mas havia muito lucro envolvido.

Tarde demais? Provavelmente tarde demais. Agora, não fará muita diferença. Para os apoiadores de Trump isso será visto como pressão dos que roubaram a eleição e haverá muita teoria da conspiração, além da que já existe. Os EUA precisam aceitar limites à liberdade de expressão. Ela deve existir, as pessoas podem falar, mas isso não quer dizer que todos tenham que ouvir. Isso é fundamental para proteger a democracia.

Jane Suiter, diretora do Instituto para Midia e Jornalismo do Futuro e professora da Universidade de Dublin, na Irlanda
Jane Suiter, diretora do Instituto para Midia e Jornalismo do Futuro e professora da Universidade de Dublin, na Irlanda - Arquivo pessoal

Fora da Presidência, Trump terá o mesmo alcance? A menos que ele esteja atrás das grades, acredito que vá iniciar a Trump TV. É lá que espero vê-lo em seis meses, e a Trump TV certamente vai disseminar falsidades. Nesse ambiente, os EUA precisam repensar a liberdade de expressão, e acredito que os legisladores já começaram a pensar nisso quando a polícia precisou entrar no Congresso para protegê-los.

O livre-discurso como é visto hoje pelos americanos não está se mostrando eficaz. Talvez eles comecem a olhar mais para o que os europeus estão fazendo para regulamentar as plataformas da internet e controlar o discurso de ódio. A administração de Joe Biden terá que olhar para isso com cuidado, e espero que os eventos em Washington tenham servido de alarme.

Como estabelecer o limite do que deve ou não ser bloqueado, do que pode ou não ser publicado? Não é uma questão de proibir as pessoas de falar. Mas elas não terão uma audiência garantida. Trump pode subir num caixote no meio do Washington Square Park, em Nova York, e dizer o que quiser. Haverá repórteres, e eles vão relatar, seja na Fox, na Trump TV, no Twitter ou no Facebook, e essas plataformas terão que assumir a responsabilidade. Se for um estímulo ao ódio racial, ao motim ou à insurreição, tudo isso é ilegal. É assim que será na Europa. Trump pode dizer o que quiser, mas quem estiver carregando essa mensagem será responsabilizado se ela for criminosa.

O meio de cultura em que esse incitamento ao ódio e à violência caiu também era propício? O ponto central é o uso da polarização. É como os humanos, todos eles, são vulneráveis a argumentos que alimentam emoções, e a psicologia pode ser usada para que eles se voltem uns contra os outros.

Trump e autoritários em todo o mundo sabem como explorar o medo. As pessoas querem estar numa tribo, e eles sabem explorar esse desejo para fazê-las se sentir ameaçadas pelos de fora da tribo. É algo que está entre nós há muito tempo, e as sociedades preciso construir instituições para resistir a isso. Os que estão de fora precisam deixar de ser vistos como um perigo. Temos que pensar em como desenhar instituições e comunicação para proteger as pessoas, fazê-las perceber como os autoritários manipulam as emoções, para que possam reconhecer quando elas estiverem sendo os alvos.

Na prática, como fazer esse desenho que evitaria a manipulação? Estamos trabalhando em um projeto para tentar fazer com que as pessoas reflitam antes de compartilhar informação: “Isso mexeu comigo por quê? Por que alguém está tentando provocar esse efeito em mim?”. Outro caminho são jogos nos quais as pessoas produzem desinformação, para que entendam como isso é feito e possam reconhecer mentiras quando receberem uma. Ações de educação científica e de educação para a mídia também ajudam a pensar criticamente. É preciso pensar em regulação e, finalmente, no papel da mídia. Não só na que está claramente disseminando mentiras. Os veículos jornalísticos precisam refletir sobre o efeito de publicar histórias apenas para conquistar audiência, porque isso pode se virar contra eles próprios.

Na cobertura da primeira eleição de Trump, a mídia apenas repetiu o que ele dizia, porque “era notícia”. Ele se aproveitou dessa lógica do jornalismo para obter uma atenção desproporcional. Em certa medida a mesma coisa acontece hoje com a desinformação sobre vacinas. Um veículo publica uma matéria sobre alguém que teve uma reação alérgica a uma vacina, algo que é natural, esperado, mas o jornalista trata como algo enorme, para atrair a atenção dos leitores.

Todo repórter, todo veículo que cobre política deveria refletir sobre seus atos.

Há risco de ser tarde demais também para a mídia tradicional? Repórteres cobriram a invasão do Capitólio sobre gritos de “mentirosos” e daí para baixo. Eu vi essa mesma cobertura, e é bem claro que aquelas pessoas sentem genuinamente que estão sendo enganadas. Mas as pesquisas mostram que muitas pessoas estão preocupadas com o que é falso ou verdadeiro, e por grande margem o jornalismo profissional tem mais credibilidade que as mídias sociais. O que os veículos precisam refletir é que não adianta ter excelentes repórteres que levantam histórias muito relevantes se na mesma página vão ser publicados textos só para atrair cliques, porque isso vai confundir o público. A qualidade tem que ser a mesma em todos os textos, para manter a credibilidade intacta.


Raio-x

Jane Suiter, 51, é cientista política, professora da Universidade de Dublin e diretora do Instituto para a Mídia e o Jornalismo do Futuro. Formada em economia e política pela mesma universidade, doutorou-se em ciência política pelo Trinity College. Em dezembro de 2020, foi premiada como pesquisador do ano do Irish Research Council.

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