Reação de Bolsonaro e Ernesto à invasão do Capitólio dificulta ainda mais relação com Biden

No Itamaraty, diplomatas veem com frustração perspectivas do relacionamento futuro entre EUA e Brasil

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Brasília

As declarações do presidente Jair Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo sobre a invasão do Congresso americano devem trazer novos obstáculos para a relação do governo brasileiro com Joe Biden.

Na avaliação de interlocutores dos dois países ouvidos pela Folha, as falas dos brasileiros devem, num primeiro momento, reforçar a imagem que os democratas têm de Bolsonaro: um radical de extrema direita, imprevisível, fiel a Donald Trump e capaz de tomar decisões contrárias aos interesses do próprio país.

O presidente Jair Bolsonaro, à esq., e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, durante evento no Itamaraty
O presidente Jair Bolsonaro, à esq., e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, durante evento no Itamaraty - Pedro Ladeira - 20.out.20/Folhapress

A longo prazo, a postura em um tema que desatou uma crise institucional nos EUA tem potencial de prejudicar tanto a interlocução entre os dois governos quanto parcerias estratégicas, principalmente se Bolsonaro insistir em antagonizar com Biden e continuar a se apresentar como o “Trump dos trópicos”.

Após as cenas de violência em Washington, na última quarta (6), quando uma multidão insuflada por Trump invadiu o Capitólio e suspendeu a sessão para certificar a vitória do democrata, Bolsonaro disse que é “ligado a Trump” e que houve “muita denúncia de fraude” no pleito americano. Também afirmou que “vamos ter problema pior que os Estados Unidos” se o Brasil não instituir o voto impresso para 2022.

Ernesto, por sua vez, publicou mensagens no Twitter nas quais condenava o ato, mas dizia que é necessário "reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral". O chanceler ainda se referiu aos vândalos como "cidadãos de bem" e sugeriu "investigar se houve participação de elementos infiltrados" no episódio.

Na sexta (8), Steven D'Antuono, diretor-assistente do FBI, disse em entrevista coletiva não ter evidências de que antifascistas estavam entre os arruaceiros que invadiram o Congresso.

Ex-embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon afirma que as manifestações de Bolsonaro e Ernesto são lamentáveis e mostram que ambos personalizaram a relação entre Brasil e EUA, "o que é um erro".

“Além do mais, eles não entendem o que está ocorrendo. Houve um ataque promovido pelo presidente [Trump] contra a institucionalidade democrática dos EUA. Foi uma tentativa de golpe que fracassou. Condenar apenas a violência não é suficiente. Precisamos de uma condenação da tentativa de danificar a institucionalidade democrática", afirma. "A maneira como o governo do Brasil está tentando usar eventos nos EUA para antecipar o que pode ocorrer nas eleições no Brasil [em 2022] é bem preocupante.”

Nick Zimmerman, ex-diretor para Assuntos do Brasil e do Cone Sul no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca (2014-16), classificou os comentários do presidente e do ministro como espantosos. Para ele, a publicação do chanceler, em especial, mostra apoio a atos de "terrorismo doméstico" nos EUA.

"As falas são uma indicação clara de que Bolsonaro e Ernesto não estão interessados numa parceria com os EUA, mas numa parceria com uma facção radical do Partido Republicano. Não são atos de um aliado."

Zimmerman afirma que a continuidade da retórica pró-Trump por parte de autoridades brasileiras levará o Brasil a uma situação de maior isolamento. "O posicionamento não deixa muito espaço para cooperação. Existe uma agenda bilateral robusta, mas não sei o quanto será possível avançar com ela nessas circunstâncias. Porque em qualquer relação diplomática os dois lados precisam estar comprometidos.”

As declarações de Bolsonaro e Ernesto também geraram preocupação entre auxiliares do presidente brasileiro, porque, segundo eles, as falas jogam mais incerteza sobre o futuro da agenda entre os países.

Um membro do governo Bolsonaro disse, sob condição de anonimato, que a manifestação sobre um tema sensível dos EUA certamente não ajuda, mas que só será possível saber o real efeito da postura brasileira após a posse de Biden, em 20 de janeiro. Esse interlocutor afirma esperar que o governo democrata entenda que as declarações buscavam atender os apoiadores mais radicais de Bolsonaro.

Ou seja, embora verse sobre os EUA, o discurso, segundo o auxiliar, era voltado para a política interna.

Outro auxiliar destaca que Bolsonaro e Ernesto assumiram uma posição arriscada e que, assim, qualquer tentativa de interlocução com os democratas será mais difícil, custosa e demorada.

No Itamaraty, diplomatas veem com frustração as perspectivas do relacionamento futuro entre os governos Biden e Bolsonaro. Alguns dizem que o Brasil está desperdiçando oportunidades que se abririam com o governo do democrata, independentemente das diferenças ideológicas.

Isso porque Biden chega à Casa Branca como um dos presidentes americanos que, em início de mandato, mais conhecem a América Latina —e o Brasil em particular. Quando era vice-presidente de Barack Obama, ele foi escalado como o interlocutor responsável por reaproximar o Brasil dos EUA após as revelações de que uma agência de inteligência americana havia espionado a ex-presidente Dilma Rousseff.

O novo líder americano também foi presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, ou seja, é afeito a temas de política externa. O Brasil, no entanto, chega às vésperas da posse do democrata em situação de precariedade em vários aspectos, entre os quais a falta de contatos de alto nível.

Biden recebeu ligações e mensagens de congratulações de diversos presidentes latino-americanos, como Alberto Fernández (Argentina), Sebastián Piñera (Chile) e Andrés Manuel López Obrador (México).

É difícil pensar num momento em que a imagem do Brasil esteve mais desgastada entre integrantes do Partido Democrata. Em outubro, Juan Gonzalez, recém-indicado por Biden para ser diretor para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional —cargo que, na prática, cuida de assuntos relacionados à América Latina—, publicou nas redes sociais uma mensagem sobre o Brasil.

“Qualquer pessoa, no Brasil ou em outro lugar, que pensa ser possível avançar numa relação ambiciosa com os Estados Unidos ignorando temas importantes como mudanças climáticas, democracia e direitos humanos, claramente não está ouvindo o que Joe Biden tem dito na campanha”, escreveu.

Durante o primeiro debate presidencial com Trump, o democrata disse que "a floresta tropical no Brasil está sendo destruída". Ele afirmou que poderia impor sanções ao Brasil e mobilizar até US$ 20 bilhões para ajudar na proteção da Amazônia. À época, Bolsonaro classificou a fala como lamentável.

Mais recentemente, o novo presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados americana, Gregory Meeks, deu outra demonstração da popularidade do presidente brasileiro entre os democratas. Prometeu exercer pressão sobre “os Bolsonaros do mundo”.

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