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Eleições EUA 2020

Risco de tornar Trump um mártir é dilema de adversários e aliados do presidente

Impeachment pode esterilizar carreira ou fomentar um momento Napoleão do republicano

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São Paulo

A história e a ficção são coalhadas de exemplos sobre o que fazer com líderes caídos, mas ainda potencialmente perigosos e com apoio popular.

A pergunta central, seja no primeiro exílio de Napoleão Bonaparte ou na morte estrepitosa de algum anglo-saxão nas mãos de dinamarqueses na série "The Last Kingdom" (Netflix), é o custo-benefício da criação de um mártir.

Atrás de uma barreira na Casa Branca, Trump fala a apoiadores que depois invadiram o Capitólio, no dia 6
Atrás de uma barreira na Casa Branca, Trump fala a apoiadores que depois invadiram o Capitólio - Brendan Smialowski - 6.jan.2021/AFP

Para a sorte de Donald Trump, ele vive em 2021. Neste momento, o máximo que está posto na mesa é a possibilidade de ser impedido e perder os direitos políticos. Patíbulo, cabeça rolando, tripas ao solo, tudo só simbólico.

Mas a eventual castração química do animal político Trump evoca temores de uma síndrome de Elba, a ilha em que o líder francês foi exilado após ver a Europa se levantar contra seu jugo em 1814.

Em menos de um ano, Napoleão estava de volta à França e derrubou seus oponentes. Acabou parado pela derrota para os ingleses em Waterloo e mandado para outra ilha, Santa Helena, onde morreu. Mas a lição sobre o que fazer com líderes turbulentos ficou.

Isso leva ao dilema que permeia o expresso movimento de democratas pelo impeachment de Trump, iniciado a uma semana da posse de Joe Biden na Presidência.

Não se trata de mérito: parece insofismável o papel do atual presidente no ataque de uma turba ensandecida ao Capitólio na semana passada, ação que deixou cinco mortos. A questão é o momento da punição.

A histórica carta divulgada por todos os chefes militares americanos condenando o ataque ao Congresso e dizendo de seu compromisso de servir a Biden provou que, se Trump queria dar um golpe, esqueceu de combinar com os russos (piada inevitável).

A maioria dos republicanos se diz contra punir Trump. Há aí dois cálculos.

Um é o dos apoiadores. O presidente teve mais de 120 votos republicanos favoráveis, na Câmara dos Representantes, à sugestão de melar o pleito —estopim da confusão.

Quando esse pessoal vê o chefe indo para o cadafalso, invoca os 75 milhões de votos que ele teve e sugere que o melhor para evitar mais confusão é deixá-lo ir para algum campo de golfe em paz.

Entre esses, há os interessados em herdar o legado trumpista, e os supracitados eleitores, para formar uma oposição consistente a Biden e recuperar a Casa Branca em 2024.

Outro grupo é o de verdadeiros aliados, que querem tudo isso com Trump à frente como uma força a unir tal movimento. O presidente já se apresentou assim diversas vezes, numa encarnação tardia de um outro republicano polêmico, Richard Nixon.

Vice-presidente de 1953 a 1961, Nixon iniciou sua política agressiva de guerra cultural, anabolizada por Trump, após ser derrotado no pleito de 1960 por John F. Kennedy. Voltou consagrado na eleição de 1968 e governou até renunciar, na esteira do escândalo de Watergate, em 1974.

Em todo esse tempo, Nixon esteve lá, circundando o mundo político. Só que a verdadeira tradição americana do século 20 era outra, a do ex-presidente que se retira da linha de frente.

Trump quer romper com isso e garantir um queremismo à americana, numa referência ao movimento que pedia a volta ao poder do ditador Getúlio Vargas após sua queda, em 1945. Cinco anos depois, ele foi eleito presidente —matou-se em 1954, mas essa é outra história.

Na fantasia dos nativistas que invadiram o Capitólio, há uma revolução à vista que prescinde do partido, dos militares, das redes sociais amigas. Essas forças seguirão obviamente relevantes, e isso alimenta a argumentação pela decapitação do movimento.

Em oposição a esses interessados e aliados, há os republicanos que podem apoiar o impeachment. O mais vistoso deles, segundo relatos em Washington, é o líder no Senado, Mitch McConnell. Ele estaria "farto e furioso", dizem as mesmas fontes para toda a mídia americana.

Eles, assim como figurões do passado recente como Dick Cheney, estão do outro lado do balcão. São pessoas que nunca toleraram a invasão do "outsider" na campanha de 2016 e, depois, tamparam o nariz.

McConnell, líder na Casa que derrubou o impeachment de Trump em 2019, agora poderia votar a favor e carregar dissidentes o suficiente para punir o presidente. Já não é uma hipótese inalcançável, como antes.

A turma quer retomar o controle do Partido Republicano. Será uma luta encarniçada, já contratada com Trump tendo direitos políticos ou não.

Do lado democrata, Biden sabiamente deixou o afiar de facas para os democratas no Capitólio. Ele precisa se afastar da ideia de que patrocinou ou apoiou a ação contra Trump por uma necessidade tática: não se antagonizar totalmente com os tais 75 milhões.

Se espera recuperar para algum tipo de centro uma fração dessa gente, isso já parece bastante improvável. Mas, ao menos na retórica, o presidente eleito sabe que precisa apelar à tal união nacional se não quiser começar o mandato com a Guarda Nacional nas ruas.

Pode ser apenas por temor, obviamente. Líderes como Trump e seu discípulo Jair Bolsonaro, que já ensaia um roteiro semelhante para 2022, costumam jogar com a impressão de que comandam lealdades maiores do que as reais.

Como todo ídolo com pés de barro, Trump talvez fosse melhor deixado para lá mesmo, aos olhos de seus adversários. Sem palanque e sendo banido pelas oportunistas redes sociais, que nunca reclamaram da audiência que ele lhes proporcionava, ele poderá falar para o vazio e desvanecer.

Ao que tudo indica, o mundo político em Washington não está disposto a pagar essa aposta, sob o risco de ter de lidar com ele como mártir das hordas do dia 6.

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