Descrição de chapéu Belarus

Seis meses depois, oposição belarussa adota 'guerrilha branca' contra ditadura

Para driblar prisão, grandes marchas dão lugar a minimanifestações, e resistência se multiplica na internet

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Bruxelas

Katia dava aula na universidade, Nasta comemorava o apartamento próprio, Maria tocava flauta, Svetlana só queria ser dona de casa e Aleksandr governava a Belarus. Seis meses depois, Katia foi demitida, Nasta está num campo de refugiados, Maria, encarcerada, Svetlana descobriu a política e Aleksandr governa a Belarus.

É no mesmo posto que assumiu há 27 anos, quando venceu a primeira e última eleição livre para presidente, que está Aleksandr Lukachenko. De ex-administrador de fazenda soviética, virou ditador, após minar opositores, dominar o Legislativo e manter a economia na mão do Estado.

Mulher de máscara branca de gato e máscara contra covid, de boina vermelha e guarda-chuva branco, entre outras também com as cores vermelho e branco
Mulheres participam do 171º dia seguido de protesto contra a ditadura na Belarus, na última terça (26) - 26.jan.2021/AFP

A história poderia mudar em 9 de agosto do ano passado, na mais recente escolha presidencial, acreditavam Katia, Nasta, Maria e Svetlana. Além delas, dezenas de milhares de belarussos foram surpreendidos pelo anúncio daquela noite, não porque o ditador se anunciava reeleito, mas pela declaração de que tivera 80% dos votos. Os indícios de fraude detonaram protestos, reprimidos brutalmente, alimentando mais protestos; a ditadura usou pressão econômica e judicial, por sua vez contornadas por velas, música, pressa e paciência.

Essas são algumas das estratégias de “guerrilha branca” usadas pelos opositores para evitar a cadeia, depois que o regime passou a condenar os manifestantes por delitos criminais. Já foram mais de 900 desses processos desde outubro, e, no começo deste ano, entidades de direitos humanos registravam 200 presos políticos na Belarus.

É difícil estimar o tamanho da “guerrilha branca” num país em que a ditadura proíbe pesquisas políticas independentes. Mesmo sem precisão estatística, porém, o centro de estudos britânico Chatham House aponta que ela é maioria. Levantamento feito em outubro indicou 23% de partidários do governo, 33% que se distanciam de ambos os lados, mas são simpáticos aos manifestantes, e 43% de opositores declarados do regime.

É dessa maioria que fazem parte os mais de 32 mil detidos —segundo relatórios do governo— desde 9 de agosto, alguns por motivos tão banais como usar pulseiras vermelhas e brancas, buzinar para manifestantes ou organizar piqueniques com os vizinhos. Entre os enquadrados pela ditadura por “tentativa de desestabilizar o governo” esteve até uma sobrevivente do Holocausto de 87 anos, Elizaveta Bursova.

Por pendurar na sacada a bandeira histórica belarussa —de faixas horizontais branca, vermelha e branca— usada como símbolo pelos manifestantes, foi considerada culpada de "ação em massa não autorizada".

A repressão também prendeu repórteres, fotógrafos e cinegrafistas que cobriam as manifestações: quase 500 foram detidos desde agosto do ano passado, segundo a Associação de Jornalistas da Belarus, e 100 condenados a prisão administrativa. Dez continuavam na cadeia em janeiro. Sites jornalísticos foram fechados e credenciais, canceladas.

“Os jornalistas se tornaram o principal alvo das forças de segurança”, afirmou na sexta (22) o repórter Stanislav Ivashkevich, da TV Belsat, numa reunião informal do Conselho de Segurança da ONU convocada por Estônia, França, Irlanda, Noruega, Reino Unido e Estados Unidos.

Um dos 62 jornalistas que denunciaram ter sido alvo de tortura, ele foi vítima da primeira onda de repressão, que apelou para a força bruta. A repórter Nasta Zakharevich, 27, por sua vez, fugiu para não engrossar a segunda onda, que trocou os cassetetes por longas penas de prisão.

Jornalista desde 2016 e especializada em ambiente, ela passou a cobrir política em setembro para a agência espanhola EFE. Na nova rotina, várias vezes precisou correr da polícia para não ser levada nos camburões. “Todos os dias saía de casa com medo de não voltar”, conta. No 11º, não voltou; passou a noite numa solitária e foi sumariamente condenada a sete dias de prisão.

“A arbitrariedade me deu mais força para cobrir as marchas quando fui solta”, diz ela. Mas, em novembro, numa marcha semanal de pessoas com deficiência, foi detida e condenada pela segunda vez, a 15 dias. “Depois disso comecei a receber ligações de números desconhecidos, fiquei apavorada, não conseguia mais dormir.”

Aceitou a oferta de um programa na Letônia para pessoas com estresse pós-traumático e pediu asilo. “Perdi toda conexão física com a Belarus. Foi como se tivesse encaixotado minha vida passada e a deixado para trás. É extremamente doloroso e estranho”, diz ela, no diminuto quarto com dois beliches que passou a ocupar num centro de refugiados em Riga, a capital letã.

Além de roupas, a jornalista levou uma forte dor no pescoço, adquirida ao dividir colchões finos em celas lotadas. “Mesmo fora da cadeia, não fiquei livre. Todos os dias a dor traz de volta a sensação da prisão.”

Migraram também as centenas de milhares de manifestantes que ocuparam as ruas até novembro, não de país, mas em direção a formas mais seguras de protesto: menos gente, por menos tempo. Segundo Katia, que perdeu seu posto na universidade por participar de protestos, até mesmo grupos nos aplicativos foram miniaturizados, por questão de segurança. “Criamos chats fechados, apenas com aqueles que realmente conhecemos.”

Por esses canais descentralizados eles preparam as minimarchas, que reúnem cerca de 200 pessoas e não ultrapassam meia hora. Uma delas, no último sábado (23), sob a neve de Minsk, apoiava um preso há 40 dias de greve de fome. Encolheram, mas aparecem diariamente: neste sábado, os protestos, independentemente do tamanho, completam 175 dias seguidos na Belarus.

Manifestantes fazem corrente de solidariedade em Minsk, no 168º de protesto contra a reeleição do ditador Aleksandr Lukachenko
Manifestantes fazem corrente de solidariedade em Minsk, no 168º dia de protesto contra a reeleição do ditador Aleksandr Lukachenko - @HannaLiubakova/no Twitter

“O nível de raiva social ainda está alto”, afirma o analista sênior para a Belarus do Centro de Estudos Orientais, Kamil Klysinski. Em texto no qual constatou a mudança na dinâmica dos protestos, ele apontou que a capacidade dos belarussos de organizar redes de apoio às vítimas da repressão “aumenta significativamente as chances de manter a resistência, mesmo em condições de terror opressor e declínio nas manifestações de rua”.

Não faltam exemplos dessas redes, que surgiram também fora da Belarus. Katia, por exemplo, segue um curso organizado por uma entidade alemã para professores vítimas da ditadura, frequenta coletivos culturais que surgiram contra Lukachenko —como o coral Volny—, vai às minimarchas e organiza protestos noturnos em que muitos vizinhos colocam velas na janela, para mostrar que a chama está acesa. Como Nasta, ela acredita que as supermarchas voltarão na primavera.

Enquanto o inverno aperta, Katia também divulga iniciativas como a do site em que se pode “adotar” presos políticos e escrever cartas online, que são depois impressas e encaminhadas. O lema do projeto é “new black”, uma ironia amarga com o fato de que “os presos políticos viraram a regra; todos os dias as pessoas correm o risco de se tornar um”. Uma delas é a música Maria Kalesnikava, que fez parte da frente de oposição a Lukachenko nas eleições de agosto e está na prisão desde setembro.

“Escrevi três cartas para ela, mas não sei se ela recebeu”, conta Svetlana Tikhanovskaia, a titular da candidatura, hoje morando na Lituânia, para onde foi forçada a fugir sob ameaças após a eleição presidencial de 9 de agosto.

Naquela época não tinha a menor intenção de seguir na política, afirma. Dias antes, em outra entrevista à Folha, havia dito que se considerava apenas “capaz de cuidar dos filhos e de cozinhar”.

Moça de cabelo escuro curto e máscara segura quatro com certificado de prêmio emoldurado e olha para moça loira de roupa azul escura que a aplaude
Svetlana Tikhanovskaia é aplaudida pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ao receber o prêmio de direitos humanos Sakharov no Parlamento Europeu, em Bruxelas - John Thys - 16.dez.2020/AFP

Seis meses —e muitas reuniões internacionais— depois, sua perspectiva mudou. “Se antes pensava que, assim que libertássemos os presos políticos e fizéssemos eleições justas, eu voltaria à cozinha para fritar costeletas, agora entendo que não posso simplesmente colocar atrás de uma lata de açúcar, na prateleira, o conhecimento e experiência que adquiri”, disse ela.

Segundo Tikhanovskaia, ela passou a entender que políticos são pessoas “que mudam o mundo ao seu redor, influenciam as relações na sociedade e entre os vários grupos de um país”. “Nesse sentido, me tornei uma política”, diz a ex-dona de casa que virou candidata por acaso.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.